domingo, 19 de fevereiro de 2012

1922: a crise econômica


A década de 1920 é uma das mais importantes do ponto de vista da história econômica, política e cultural brasileira, e mesmo mundial. É um período de transição, de grande efervescência, que tem paralelos interessantes com o que acontece hoje.

Minha intervenção aqui se centrará, contudo, no ano de 1922, momento em que talvez se tenha chegado mais perto de uma ruptura, exceção feita evidentemente para o final da década, quando a ruptura realmente ocorreu. Talvez eu focalize mais a árvore e perca um pouco da floresta da década de 20, mas como o desafio daqueles anos foi uma espécie de tentativa de resolver a ressaca da crise econômica de 1921-1922, 22 é um bom começo.

Mil novecentos e vinte e dois é um ano de profunda crise econômica, só comparável, na experiência republicana anterior, à gigantesca crise da década de 1890, que só acabou com o enorme esforço de ajustamento do período Campos Sales sob a tutela financeira britânica. Tem-se em 22 uma crise do café, uma inflação em alta e, especialmente, uma crise fiscal. É o final do governo Epitácio Pessoa, que, no entanto, havia começado com uma grande esperança de prosperidade, com grande otimismo, depois de anos de guerra, apreensões e dificuldades – de certa maneira, o fim do governo Epitácio parece muito com o fim do governo Sarney.

É desse clima de crise do Estado que surge ou que é renovado, como também se pode interpretar, o acordo Minas – São Paulo, que garante a eleição do mineiro Artur Bernardes, mas dá aos paulistas o controle absoluto da economia, com Sampaio Vidal no Ministério da Fazenda e Cincinato Braga no Banco do Brasil. Se se quiser recortar um exemplo de acordo café com leite, não existe nenhum melhor do que este, que solidifica a candidatura Bernardes contra os ataques violentos dos militares, numa situação de crise fiscal e crise do Estado como a que marca o final do governo Epitácio.

Essa aliança marca também o primeiro compromisso formal do governo federal com a valorização permanente do café, que será uma bandeira do governo Bernardes mais à frente. Vinte e dois é, portanto, um ano de crise, mas de uma crise que gera uma reação de continuidade do regime, que sacode Minas e São Paulo para uma aliança formal. Por que, afinal, 22 foi tão ruim? A partir de que momento o governo Epitácio degringolou na gestão da economia? Quais as origens da crise?

A crise que começa na segunda metade de 1920 chega ao auge em 1922, mas, na verdade, se arrasta até o final do governo Bernardes. Ela é um exemplo de livro-texto de choque externo adverso, ou seja, daqueles choques que marcam o comportamento de uma economia primária exportadora muito dependente do preço do seu produto básico. Epitácio Pessoa assume o governo em ótimas condições em 1919. É um período de alta do preço do café sem precedentes na memória das pessoas que viveram naquela época. Em 1918, uma imensa geada havia arrasado os cafezais de São Paulo. Ora, a produtividade logo depois de uma geada é muito pequena, pois as árvores demoram um tempo para se recuperar.

Em 1919, portanto, os estoques estão baixos. Além disso, há um grande crescimento da demanda nos países centrais devido ao fim da guerra e à desmobilização das tropas. O medo do desemprego que a desmobilização rápida dos homens, com as mulheres ainda nas fábricas, poderia provocar, conduz esses países a uma política econômica expansionista, levando os governos a soltar o crédito. Diga-se de passagem, também, que na Europa a população civil não tomava café havia muito tempo. Esse crescimento da demanda mundial, combinado à restrição da oferta, eleva o preço do café até as nuvens.

A entrada no Brasil de uma receita de exportação muito grande leva, por sua vez, a uma enorme apreciação cambial, exatamente numa época em que a indústria está querendo investir. Os bens de capital tornam-se mais baratos, e abre-se um período de aumento das importações. O crescimento da atividade econômica tem um impacto muito favorável sobre a receita fiscal do governo, e o ano de 1919 se abre com grandes perspectivas de boa saúde financeira do governo. Com os Estados Unidos ainda no começo de sua disputa com Londres pela posição de centro financeiro, o Brasil começa a negociar empréstimos norte-americanos em 1920. Essa melhora na posição fiscal, somada a uma espécie de visão consensual sobre a necessidade de investimento público, leva finalmente a um grande programa de obras.

De fato, Epitácio Pessoa assume o governo em 1919 com um programa de obras que se ergue sobre duas pernas. A primeira delas está no Nordeste – afinal tratava-se de um presidente nordestino, o que aliás constitui outro ponto de semelhança com Sarney. Pouco tempo antes tinha havido também uma grande seca que se tornou famosa. O primeiro grande programa de obras contra as secas, com a construção de açudes, é assim lançado no governo Epitácio Pessoa, e isso nos custa uma grande quantia de dinheiro em libras e dólares, pois não tínhamos, na época, oferta interna de serviços e tecnologia, e as obras tiveram de ser contratadas no exterior.

Em segundo lugar, mas não menos importante, vem o programa de investimentos nessa espécie de sala de visitas que era o Rio de Janeiro da época, com vistas à Exposição do Centenário de 1922. A importância que as elites brasileiras davam à preparação da cidade para a exposição pode ser vista na epígrafe do capítulo 2 do livro de Marly Silva da Motta, onde se lê: É preciso que quem aqui aportar encontre, como primeira cidade brasileira, alguma coisa que provoque louvores.

As obras para a exposição são monumentais. O que havia sobrado – e havia sobrado muito – do morro do Castelo, foi levado para dentro d'água. Vários pavilhões foram construídos, muitos deles com o dinheiro dos governos dos países participantes. De toda forma, a infra-estrutura da exposição consome um colosso de dinheiro. Também no governo Epitácio, tem início a urbanização de Ipanema e da Lagoa Rodrigo de Freitas, com arruamentos, calçamento com paralelepípedos e construção de redes de esgotos. O imenso programa de obras do Rio de Janeiro beneficia ainda outras áreas públicas.

É engraçado observar, lendo os depoimentos da época, que como num reflexo do que se passava na Europa, Epitácio justificava seu imenso programa de obras como uma medida para combater o desemprego que iria se seguir à guerra, o que no Brasil não fazia o menor sentido. O desemprego no Brasil era estrutural, o país não empregava, mas também não tinha mobilizado um grande número de tropas para a guerra. Obviamente o programa do Nordeste se justificava por si só, devido aos efeitos sociais e econômicos da seca. Porém, justificar os altos investimentos em obras públicas como uma forma de minimizar o desemprego, incorporando a preocupação conservadora européia e americana com o avanço das esquerdas no pós-guerra, era algo absolutamente esquizofrênico.

Toda essa perspectiva positiva que está por trás do início do governo Epitácio, em termos de solidez fiscal e de condições para um bom programa de obras, desaparece, no entanto, como por magia com o começo da crise mundial. Na verdade, o período de 1919 a 1922 é conhecido na literatura sobre a economia mundial como o período do boom e da recessão do pós-guerra. As origens da recessão são muito parecidas com as origens do boom: são as mudanças na política econômica dos países centrais, preocupados com o efeito da desmobilização. Primeiro, esses países viram que o efeito do desemprego provocado pela reconversão à economia de paz não foi tão grande. Por outro lado, a expansão monetária e o crescimento muito rápido das economias beligerantes levaram ao enfraquecimento das moedas dos países europeus e à dificuldade de combater a inflação herdada da guerra.

Começa então a aparecer a reação conservadora, que depois vai se cristalizar na França com Poincaré e na Inglaterra com a volta dos Tories, com Churchill como ministro da Fazenda, reação essa que está muito mais preocupada com a restauração do valor da moeda e com a solidez financeira do que com o emprego. Começa então a mover-se o pêndulo: depois de se preocupar com o desemprego, a restauração burguesa da Europa começa a dar mais peso ao conservadorismo monetário e fiscal. No começo de 1920, há na Europa uma passagem clara para políticas de contenção fiscal e de juros altos, que levam a uma reversão do boom do pós-guerra, que por sua vez tem efeitos devastadores sobre o café.

A reversão provoca uma queda nos preços de commodities em geral, mas atinge particularmente o café por razões exatamente contrárias àquelas que haviam feito subir seu preço em 1919, ou seja, escassez de oferta e crescimento de demanda. Em 1920, a oferta já está normal e a demanda cai. A virada no mundo ocorre na verdade no meio do ano de 1920. Os preços do café, que vinham subindo enormemente, param de aumentar no terceiro trimestre e despencam no final do ano.

Esse fato tem efeitos graves sobre a saúde financeira do Estado brasileiro. Exatamente naquela hora, Epitácio havia iniciado um programa de metas que implicava compromissos políticos importantes e que ele não podia mais suspender. O Rio de Janeiro tinha de ser a sala de visitas do país na Exposição do Centenário, e o futuro político de Epitácio estava pendurado em seu programa de obras contra as secas.

A crise de 1920-1922, em termos de efeitos sobre os preços em nível de atividade internacional, é mais severa do que a Grande Depressão. A variação dos preços internacionais e do desemprego é maior em termos de amplitude. É uma crise mais rápida que não tem os efeitos perversos, em cadeia, ocorridos em 1929-1932. Não houve reações protecionistas, a economia mundial não foi descendo lentamente pelo abismo. Houve um choque muito violento. A economia mundial voltaria a crescer, e pode-se dizer que, por volta de 1922, o pior já havia passado. Entretanto, o período entre o fim de 1920 e o começo de 1922 é muito duro.

Para o Brasil, os efeitos do colapso do preço do café são duríssimos. Primeiro, há uma enorme desvalorização cambial, que chega a valores nunca vistos na história da República. As importações caem, e isso afeta as receitas públicas, para as quais eram importantes as tarifas alfandegárias. O nível de atividades se reduz, e isso é grave num país cuja estrutura tributária era baseada em impostos indiretos. A receita do governo diminui, de um lado, em conseqüência da queda no volume das transações, e, de outro, em virtude da depreciação rápida do câmbio, que encarece os produtos estrangeiros e tem um efeito perverso sobre a inflação. Na economia aberta da Primeira República, a inflação está muito associada ao câmbio. Toda vez que se tem uma depreciação muito forte, segue-se um período de inflação. E a inflação, como cansamos de ver agora nos anos 80, erode ainda mais a receita fiscal.

O que acontece no Brasil, em resumo, é um enorme desequilíbrio financeiro do governo. Para piorar, a crise faz com que os empréstimos norte-americanos, que haviam começado a aparecer logo depois da guerra, cessem. A Inglaterra ainda levaria três ou quatro anos para arrumar a casa e poder emprestar, e a França não mais voltaria a fazer empréstimos depois do choque psicológico do calote soviético. Sobra apenas um meio de financiar o déficit: a emissão de moeda ou a colocação de títulos da dívida pública no mercado. Isso aumenta o desequilíbrio financeiro e alimenta a inflação.

Além do mais, por ter sido muito violento, o colapso dos preços reacende de 1921 para 1922 uma forte pressão de São Paulo em favor da defesa do café. A última pressão havia ocorrido em 1917. Desde o convênio de Taubaté, não se falava mais nisso, mas agora os paulistas voltavam com força. Bancar a defesa do café significava mais gastos públicos para comprar estoques e segurar os preços, porém, o governo Epitácio cede; por duas razões.

A primeira delas é a decisão de atender aos interesses corporativos do café. Porém, o mais importante é o reconhecimento do fato de que a crise fiscal do Estado era decorrente da depreciação cambial, que por sua vez era decorrente do colapso do preço do café. Existe um discurso de Epitácio que não deixa a menor dúvida a respeito da defesa do café, e vários outros documentos já provaram que a racionalidade era essa significa defender o Estado, a estabilidade econômica e financeira do Estado. Os interesses da cafeicultura e do Estado brasileiro se confundem. E mais: há um acordo tácito de que não se interromperiam as obras do Nordeste em troca da defesa do café. É um tipo de acordo que sempre se faz no Brasil com o dinheiro público - no final dois mais dois são oito.

Por tudo isso, o final do governo Epitácio Pessoa apresenta um absoluto desequilíbrio fiscal. No entanto, a defesa do café também tem um imenso efeito positivo: segurando-se os preços do café, corta-se o desequilíbrio do balanço de pagamentos, que está na base do desequilíbrio fiscal e da queda das receitas públicas. Isso tem um efeito positivo sobre a indústria, e nos permite dizer que, do ponto de vista do nível de atividades, o pior estava passando. De toda forma, a herança do governo Epitácio é um desequilíbrio fiscal gigantesco, e isso o torna ainda uma vez parecido com o governo Sarney.

A aliança política que apóia Artur Bernardes é muito clara. Sampaio Vidal e Cincinato Braga vão para o governo basicamente para fazer a defesa permanente do café. É um modelo novo de defesa. Constroem-se armazéns enormes nos entroncamentos ferroviários, e os estoques comprados pelo governo passam a ser controlados dentro do país – antes, eram mandados para a Europa e ficavam sob controle dos importadores estrangeiros. Agora tudo passa a ser feito no Brasil, mas é preciso dinheiro. O programa dessa aliança passa, portanto, por um ajuste fiscal, imposto pela necessidade de financiamento das safras. Todo o discurso de austeridade fiscal de Bernardes vai por água abaixo.

Em 1923, há novamente pressão. A safra é grande, e o Banco Central independente criado por Cincinato Braga vira uma máquina de fazer dinheiro para financiar o café. O desequilíbrio fiscal continua, o governo se vê de novo à beira de uma crise fiscal e tem de fazer algo muito parecido com o que fez o governo Campos Sales na tentativa de preservar a República, ou seja, tem de entrar em contato com o governo inglês para um grande empréstimo de consolidação. Uma missão inglesa vem ao Brasil e coloca condições para esse empréstimo. Uma delas é que o governo abandone a defesa do café. Bernardes concorda, e, em 1924, há um racha importante no acordo Minas – São Paulo.

Os mineiros, ao contrário dos paulistas, sempre derivaram seu poder na Primeira República do controle dos recursos públicos. Nunca houve uma burguesia mineira como havia em São Paulo, onde a elite política era visivelmente plutocrata, de origem fazendeira. Em Minas, havia políticos de carreira e cultivava-se a idéia de que o equilíbrio fiscal era coisa a ser preservada. É assim que Bernardes ejeta Sampaio Vidal e Cincinato Braga sem a menor cerimônia e adota um rígido programa de austeridade. Em dois anos, é restaurado o equilíbrio fiscal, apesar do relativo insucesso das negociações com os ingleses, de cujo empréstimo só chega muito depois. Só que esse ajuste fiscal vem numa hora em que o governo já não precisava tanto dele, pois o mundo estava começando a melhorar e novamente começavam a aparecer capitais.

O fim do governo Bernardes é interessante. Quando ele ejeta os paulistas, abre mão, de modo totalmente unilateral, da responsabilidade federal pela defesa do café e a entrega ao governo de São Paulo. Bota o bebê na porta e toca a campainha. Porém, no momento em que Bernardes consegue fazer esse ajuste fiscal fantástico, cria-se um problema muito parecido com o do período Campos Sales – Rodrigues Alves. A economia mundial cresce, e começa-se a ter um embaraço de riquezas: muito fluxo de capital, exportações se comportando bem, atividades ainda reprimidas e, portanto, importações ainda baixas.

Tem-se então um excesso de cambiais, e a taxa de câmbio começa a valorizar de novo. Bernardes acha bom, porque pensa nas finanças públicas, mas o setor produtivo não gosta muito disso. Sabe-se que os exportadores não gostam de câmbio que valoriza, mas não são só os cafeicultores que protestam. Os produtores têxteis são os que mais berram contra a apreciação do câmbio no final do governo Bernardes. Começam então, de novo, as pressões para a estabilização da moeda e para a volta ao padrão-ouro, mecanismo pelo qual se evita a apreciação cambial. Estabilizando-se a taxa de câmbio, cresce o volume de moeda interna, o que é música para os ouvidos dos empresários. É evidente que, num ano de campanha eleitoral, o candidato à presidência tenderia a incorporar ao seu discurso a volta ao padrão-ouro e a criação de uma Caixa de Estabilização. Foi isso o que fez Washington Luís. Em seu governo, o país conheceu um imenso crescimento, até o mundo mudar novamente, com a Grande Depressão. Mas esta já é outra fase da história do Brasil.

Fonte

FRITSCH, Winston. 1922: a crise econômica. In:______. Estudos históricos, v. 6, n. 11, Rio de Janeiro: CPDOC, 1993. p. 3-8.


Um comentário:

  1. Muito bom! Obrigado pelo resumo, precisava de algumas informações. Muito contundente o texto, obrigada!!!

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