Resumo:
Este artigo analisa a agricultura familiar no Brasil à luz de múltiplas dimensões: socioeconômica, territorial, histórica e institucional. A partir da literatura especializada e de dados censitários, discute-se a evolução do setor, os impactos das políticas públicas, especialmente do PRONAF, e os dilemas enfrentados diante da modernização seletiva do campo. O foco recai sobre as desigualdades regionais, com destaque para o semiárido nordestino e os territórios quilombolas, evidenciando as possibilidades e limites da agricultura familiar como vetor de desenvolvimento rural sustentável e justo.
Introdução
A agricultura familiar representa a base da estrutura agrária brasileira em número de estabelecimentos, trabalhadores ocupados e diversidade de culturas. Apesar disso, convive com assimetrias históricas de acesso à terra, crédito, tecnologia e infraestrutura. Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre a trajetória recente desse setor, considerando os dados do Censo Agropecuário, os avanços e limites das políticas públicas, e os desafios impostos pelas transformações estruturais da agricultura brasileira no período recente (1995–2020).
Agricultura Familiar: Conceito, gênese e caracterização
A definição legal da agricultura familiar foi consolidada pela Lei nº 11.326/2006, estabelecendo critérios como a gestão do estabelecimento pela própria família, o uso predominante de mão de obra familiar e o limite de até quatro módulos fiscais. Segundo o “Novo Retrato da Agricultura Familiar” (MDA/IBGE, 2010), essa categoria abrange aproximadamente 84% dos estabelecimentos rurais e responde por cerca de 70% da produção alimentar que abastece o mercado interno.
Contudo, essa presença majoritária contrasta com o controle de apenas 24% da área agrícola total e com uma baixa participação na renda bruta gerada pelo setor agropecuário (Scheuer, 2019). A pesquisa de Guanziroli et al. (2001, 2006, 2017) mostra a permanência de uma estrutura produtiva bifurcada: de um lado, o agronegócio moderno e capitalizado; de outro, a agricultura familiar, diversificada e desigual.
Dinâmicas Regionais: Nordeste e Semiárido em perspectiva
A agricultura familiar não é homogênea. No semiárido nordestino, estudos como os de Aquino e Lacerda (2014) e Baiardi (2014) apontam que a maior parte dos agricultores familiares permanece em situação de pobreza estrutural, com limitada capacidade de reprodução econômica. Ainda assim, destaca-se a resiliência desses agricultores em sistemas produtivos adaptados à escassez hídrica e à sazonalidade climática.
Dados comparativos entre os Censos Agropecuários de 1996, 2006 e 2017 mostram avanços modestos em termos de acesso a bens de produção, mas mantêm uma elevada dependência de políticas compensatórias (Guanziroli et al., 2017). O semiárido apresenta ainda fortes conexões entre agricultura, transferências públicas (Bolsa Família, aposentadorias rurais) e redes de solidariedade comunitária.
PRONAF: Avanços, limites e tensões
Criado em 1995, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) constitui a principal política pública voltada ao segmento. Segundo Bianchini (2015), o programa promoveu a ampliação do crédito rural, a melhoria da renda e o incremento de práticas sustentáveis em parte dos estabelecimentos familiares. Porém, seu alcance tem sido limitado por assimetrias regionais e por dificuldades de acesso, especialmente entre mulheres, povos tradicionais e agricultores mais pobres (Grisa, 2012; Capellesso et al., 2018).
A evolução do PRONAF revela uma tendência à concentração de crédito nas regiões Sul e Sudeste, com baixo desempenho no Nordeste, especialmente no semiárido (Schneider et al., 2004). Vecina (2023) mostra que mesmo em comunidades reconhecidamente vulneráveis, como os quilombolas do Vale do Ribeira, o acesso ao PRONAF enfrenta entraves burocráticos e estruturais, o que evidencia a permanência de mecanismos excludentes na política agrícola brasileira.
Agricultura Familiar, reconhecimento e sustentabilidade
O reconhecimento da agricultura familiar como categoria social e política foi uma conquista do processo de redemocratização e da mobilização social. Como argumenta Viola (1992), a institucionalização de pautas ambientais e sociais no campo impulsionou um novo paradigma de desenvolvimento rural, baseado na valorização da diversidade territorial e cultural.
Todavia, o trabalho de Catia Grisa (2012) mostra que as ideias que sustentaram a formulação de políticas para a agricultura familiar foram sendo gradualmente reconfiguradas: do enfoque em direitos e justiça social para uma visão mais tecnocrática, centrada na eficiência produtiva e nos mercados. Isso criou tensões entre os ideais de fortalecimento da agricultura camponesa e as práticas de integração subordinada ao agronegócio.
Conflitos e Resistências: Territórios Quilombolas e Cartografia Social
A Nova Cartografia Social da Amazônia (Almeida et al., 2010) evidencia como a agricultura familiar se entrelaça com lutas por território, identidade e autodeterminação em comunidades tradicionais. A invisibilidade dos quilombolas, ribeirinhos e indígenas nos censos e políticas públicas reproduz exclusões históricas, que só recentemente começaram a ser enfrentadas pela via de políticas diferenciadas.
Considerações finais
A agricultura familiar no Brasil revela, ao mesmo tempo, sua centralidade produtiva, sua diversidade socioterritorial e sua vulnerabilidade estrutural. As políticas públicas, especialmente o PRONAF, desempenharam papel fundamental na redução da pobreza rural, mas não conseguiram romper com o padrão de desigualdade fundiária, nem garantir autonomia plena aos pequenos produtores.
No contexto de crise climática, insegurança alimentar e regressão de direitos, torna-se urgente revalorizar a agricultura familiar como parte de um projeto nacional de desenvolvimento sustentável, territorialmente justo e socialmente inclusivo. Isso requer mais do que crédito: exige reforma agrária, assistência técnica pública, valorização dos saberes locais e participação efetiva dos sujeitos do campo nas decisões do Estado.
A pequena produção rural e as tendências do desenvolvimento agrário brasileiro: ganhar tempo é possível? – Brasília : CGEE, 2013
<https://www.cgee.org.br/documents/10195/734063/Livro_Pequena_produ_rural_9525.pdf/c6deb8b4-9523-47a0-ac11-c0eed33b2f99?version=1.2>
Cadernos de debates Nova Cartografia Social: Territórios quilombolas e conflitos / Alfredo Wagner Berno de Almeida (Orgs)... [et al]. – Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia / UEA Edições, 2010
<http://www.pontaojongo.uff.br/sites/default/files/upload/livro_territorios_quilombolas_conflitos.pdf>
Políticas públicas para a Agricultura Familiar no Brasil: produção e institucionalização das ideias
Catia Grisa
<http://www.reformaagrariaemdados.org.br/sites/default/files/2012%20Tese-Catia-Grisa.pdf>
HISTÓRICO, CARACTERIZAÇÃO E DINÂMICA RECENTE DO PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar Sergio Schneider 1 Lauro Mattei 2 Ademir Antonio Cazella 3 Publicado em SCHNEIDER, Sergio; SILVA, Marcelo Kunrath; MARQUES, Paulo Eduardo Moruzzi (Org.). Políticas Públicas e Participação Social no Brasil Rural. Porto Alegre, 2004, p. 21-50.
<aqui>
A agricultura familiar e o desenvolvimento rural no nordeste do Brasil: uma análise comparativa com a região sul
Silvia Kanadani Campos; Zander Navarro (Orgs.)
<https://www.cgee.org.br/documents/10195/734063/Livro_Pequena_produ_rural_9525.pdf/c6deb8b4-9523-47a0-ac11-c0eed33b2f99?version=1.2>
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