segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Vícios privados, virtudes públicas


Sou favorável à liberalização do comércio e do consumo de drogas. De todas as drogas. E sou favorável à internação compulsiva de dependentes de crack em situações extremas, exactamente como sucede em São Paulo. Uma contradição?

Não creio. Tenho direito a defesa? Muito obrigado.

E começo a minha defesa com John Stuart Mill (1806 - 1873), o liberal clássico que formulou o célebre "princípio do dano" que deve regular as relações entre indivíduos - e, sobretudo, a relação do Estado com os indivíduos.

Amanhã, na coluna da "Ilustrada", voltarei a esse princípio para responder a um inteligente texto de Hélio Schwartsman que criticou a minha crítica às chamadas "barrigas de aluguel" com base nesse preceito liberal ("Leasing uterino", 9/2/2013).

Mas, por agora, relembro o que diz o "princípio do dano": o único motivo pelo qual o Estado pode interferir na liberdade dos indivíduos contra a vontade destes é para impedir que essa liberdade cause dano a terceiros.

Se os actos do invidíduo apenas dizem respeito a ele próprio, nós podemos dar conselhos; persuadi-lo a escolher outro caminho; tentar moralizar a sua conduta. Mas é ele, e apenas ele, quem habita plenamente a sua liberdade.

Concordo com Stuart Mill e só por isso sou favorável à liberalização do comércio e do consumo de drogas. Se um indivíduo decide, autonomamente, consumir drogas, o problema só a ele lhe diz respeito.

Podemos lamentar. Podemos moralizar. Podemos advertir. Mas se a escolha é livre e autónoma, nada justifica que o Estado interfira nesse consumo.

O problema só muda de figura quando se verificam duas situações - e ambas previstas por Stuart Mill, mas que os seus acólitos mais libertários tendem a esquecer.

A primeira é que o "princípio do dano" só faz sentido numa "comunidade civilizada" entre seres humanos "civilizados". E, de preferência, entre seres humanos que não estejam dispostos a, livremente, destruir a sua própria liberdade.

O caso da escravidão, expressamente analisado por Stuart Mill, é um bom exemplo: um ser humano pode decidir, livre e autonomamente, escolher ser escravo de outro.

Mas essa decisão constitui uma destruição da sua liberdade, pelo que o "princípio do dano" deixa de fazer sentido. O Estado deve respeitar a liberdade individual enquanto existir liberdade individual para ser respeitada.

No caso dos consumidores terminais de crack que se arrastam pelas ruas da cidade, só por piada falamos de agentes livres e autónomos. O que começou por ser uma escolha livre e autónoma transformou-se numa espécie igualmente insidiosa de escravidão. Com as drogas, nem sempre é assim - e conheço casos de consumidores de uma vida inteira plenamente normais e funcionais. Mas, às vezes, a história é mais funesta.

Existe, porém, um segundo critério para que o "princípio do dano" seja respeitado: é preciso que a liberdade individual não cause dano a terceiros.

Que o mesmo é dizer: se alguém decide fumar crack no remanso do seu lar, destruindo privadamente a sua vida, eis um cenário que podemos lamentar mas jamais impedir. Suicídios imediatos ou suicídios lentos, eis uma fatalidade que faz parte da existência humana.

Coisa diferente são suicídios públicos perante o olhar de terceiros. A questão, aqui, já não lida apenas com a área de liberdade individual que eu sou obrigado a respeitar.

A questão passa a ser a minha liberdade que não está a ser respeitada. No caso, a liberdade de poder viver numa comunidade onde não tenho que assistir à degradação inimaginável de um ser humano. Um ser humano que, mais do que um perigo para ele próprio, pode também ser um perigo para mim.

Há aqui uma posição hipócrita, própria de quem só tolera males se eles estiverem longe da vista?

Admito que sim. Mas prefiro formular a questão de outra forma: a liberdade individual talvez seja um valor mais raro e abstracto do que muitas vezes imaginamos.

Porque as nossas acções, mesmo as acções que consideramos absolutamente nossas e absolutamente livres, podem ter implicações na liberdade de terceiros.

Na liberdade de familiares, amigos, vizinhos. Na liberdade de meros desconhecidos. Na liberdade de habitarmos o mesmo espaço sem que a morte pública de uns seja pacificamente aceite na vida de outros.

Eu respeito a escolha livre de quem decide consumir drogas. Desde que esse respeito seja recíproco.

Ou, como diria um famoso autor, vícios privados, virtudes públicas.
João Pereira Coutinho
João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do "Correio da Manhã", o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve às terças na versão impressa de "Ilustrada" e a cada duas semanas, às segundas, no site.

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