quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

SECA E PODER

CELSO FURTADO — "Vamos começar pelo drama da seca, que se repete. O drama do Nordeste é demasiado conhecido. Não é de hoje e nem vou responsabilizar um determinado governo. Tentei fazer alguma coisa no Nordeste e sei como é difícil qualquer mudança. 

A responsabilidade maior é da classe política nordestina, que se prevalece das suas posições no governo para dificultar a formulação de uma política. A verdade é que nós todos sabemos muito bem o que fazer no Nordeste. 

O Nordeste teve um desenvolvimento considerável nestes últimos 20 ou 30 anos. Urbanizou-se, tem uma classe média bem instalada, e deixou esses 10 milhões de nordestinos da zona semi-árida mais ou menos ao abandono, dependendo de uma ajuda circunstancial para sobreviver. 

Não há nenhuma região semi-árida do mundo tão povoada como o Nordeste. Já é difícil de se entender como se mantém isto. Na Sudene, tentamos orientar a migração de mão de obra do Nordeste para o Maranhão, para a Amazônia, de forma sistemática, distribuindo terra para essa gente. 

As regiões semi-áridas são pouco povoadas. Não que elas não possam ter viabilidade, mas não são aptas para criar muito emprego. E o Nordeste semi-árido tem, ainda hoje, 10 milhões de habitantes; tem, portanto, um excesso de população. Isso é o lado profundo do problema. Mas o problema urgente é outro. É uma questão de obras de emergência. Isso todo mundo já sabe. 

Não precisa ter imaginação para saber que, quando ocorre uma seca, o que hoje em dia já se pode prever perfeitamente, ou razoavelmente bem, se lança mão de uma ajuda de emergência. Essa ajuda se tornou muito mais fácil nos últimos anos. Hoje, você pode transportar água com mais facilidade. Mas é preciso estar preparado: prever e lançar os projetos na hora certa. 

Por outro lado, é preciso que esses projetos não fiquem sendo manipulados pelos grupos locais. A novidade da Sudene foi que ela preparou uma carteira de projetos de emergência. O drama que estamos presenciando é o da falta de renda de uma população miserável, que passa a morrer de fome porque depende, para comer, dessa pequena renda que tem. Isso tudo é sabido, conhecido. 

O nosso amigo Manuel Correia de Andrade, que está aqui, também sabe. Agora, o que me surpreendeu, e eu disse já mais de uma vez para a imprensa, é que o governo não tivesse agido preventivamente, porque sabia que essa seca vinha. 

Hoje, existem muitos recursos para previsão, e sabe-se mais ou menos a probabilidade da ocorrência da seca. E a ação rápida, por meio de projetos de emergência, é coisa que se pratica há muito tempo. Nos meus anos na Sudene, nunca houve propriamente seca dessa forma flagrante, pois quando o inverno era fraco nós já tínhamos o mapa da situação. Prevíamos perfeitamente e levávamos ajuda à população, criando frentes de trabalho — frentes úteis de trabalho, de construção e manutenção de rodovias, da chamada dry farm, agricultura seca. 

Portanto, o que me surpreendeu foi que este governo, 40 anos depois, com muito mais meios para prever e agir, não tivesse uma carteira de projetos pronta e iniciasse a ação rapidamente, para evitar esse escândalo. A população morrendo de fome, de sede por falta de ajuda pública. 

Porque é um problema de ajuda pública. Não existe nenhuma região do mundo submetida a esse susto. Quem tem um problema de semi-aridez já possui uma política para enfrentá-lo. O Nordeste não é uma região árida, mas semi-árida, de um tipo muito particular, porque a precipitação pluviométrica é normalmente alta. 

O Nordeste tem um inverno razoável, mas sua estrutura social é muito frágil, porque depende diretamente da agricultura. E quando a agricultura desaparece, por causa da seca, fica-se sem comida. Normalmente, quando a população fica sem emprego, em qualquer parte do mundo, mesmo no Brasil, a fórmula é ajudá-la com antecipação, antes que passe fome. 

Portanto, considero um escândalo que, hoje em dia, estejamos repetindo um discurso que todos nós sabemos que resulta de incúria. Fernando Henrique sabe disso. Um pouco se explicando, ele disse que não foi prevenido, que recebeu a informação em duas ondas: informaram bem no começo, depois informaram mal, dizendo que não havia problema. 

Ora, isso ocorreu porque ele está cercado de gente interessada mais na indústria da seca do que na solução do problema da seca. Como presidente da República, ele tem todos os meios para estar bem informado. Fui superintendente da Sudene por seis anos e me recordo: nunca fomos apanhados desprevenidos. O que não queríamos era agir no sentido de reforçar essa estrutura agrária. Por isso, simultaneamente lançamos a idéia de uma transformação da estrutura agrária. 

Por exemplo, queríamos que se liberasse terra na Zona da Mata, na zona úmida, onde havia muita terra subutilizada, para absorver gente. E queríamos que fosse adotada uma agricultura adaptada à região semi-árida, que emprega pouca gente: sabíamos que era preciso combinar a dry farm com a irrigação. 

Para isso, tentamos aprovar uma lei de irrigação. Uma das maiores batalhas que tive na Sudene, provavelmente a mais completa derrota que tive, foi no projeto de lei de irrigação. Já para aprovar o projeto no Conselho da Sudene foi um sacrifício. 

O projeto de irrigação dizia, basicamente, o seguinte: o dinheiro posto pelo governo na irrigação tem de ser de interesse social, não é para reforçar o que existe como estrutura agrária. Portanto, tinha de haver desapropriação dessas terras antes que elas se valorizassem".


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O drama da seca se repete e as "soluções" continuam subordinadas aos interesses dos políticos. 

O tempo passa, governos mudam, mas a essência é a mesma: a indústria da seca permanece implacável!

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