terça-feira, 15 de maio de 2018

Crise capitalista: Uma análise marxiana


A causa, as formas teóricas de manifestação e o conteúdo da crise capitalista: Uma análise marxiana

RESUMO

O presente artigo buscou detectar as formas de manifestação teóricas da crise de superprodução na atual crise, denominada de crise financeira ou do subprime. Para tanto, se baseou no trabalho de sistematização feito por Ribeiro (2008), elaborado a partir da obra de Marx, O Capital. O surgimento da mercadoria (ao criar a contradição VxVU) e do dinheiro (ao ampliá-la), já se constituem nos elementos que tornam a crise de abundância uma possibilidade, numa sociedade de produtores individuais de mercadorias. Por sua vez, o modo capitalista de produção, ao ampliar as contradições mencionadas e criar uma série de outras novas e de elementos potencializadores destas, torna a crise de surperprodução uma necessidade, de modo que do nível das possibilidades, ela se torna uma realidade. O caráter social da produção em contradição com a apropriação privada capitalista, consiste na maior de todas as contradições, que faz parte da essência do modo capitalista de produção.

Palavras-chave: crise, contradições, subprime


ABSTRACT

The present paper searched to detect the theoretical forms of manifestation of the overproduction crisis in the current crisis, called of financial or subprime crisis. For in such a way, it based on the theoretical systematization made for Ribeiro (2008), elaborated from Marx’s The Capital. The sprouting of the merchandise (when creating the VxVU contradiction) and of the money (when extending it), already consists in the elements that become the abundance crisis a possibility, in a society of individual producers of merchandises. In turn, the capitalist way of production, when extending the mentioned contradictions and creating a series of other new elements of these, overproduction crisis becomes a necessity that of the level of the possibilities, it if becomes a reality. The social character of the production in contradiction with the capitalist private appropriation, consists of the greater of all the contradictions, that part of the essence in the capitalist way of production.

Key-words: crisis, contradictions, subprime








1-      Introdução

O estouro da bolha imobiliária em julho de 2007, culminou, mais uma vez, na brusca mudança da acumulação capitalista, rumo a uma fase do ciclo não muito agradável, denominada de crise. Desta vez o nome dado ao acontecimento foi “crise do subprime”, ou crise financeira. Em sua principal obra, Marx se deteve em analisar também o comportamento cíclico do processo de acumulação capitalista, concluindo que a crise de superprodução constitui uma lei do modo de produção capitalista, assim como o desemprego, a tendência da taxa de lucro decrescer, etc.
Ao tratar a crise de superprodução como uma lei, Marx deixou claro que recorrentemente ela viria perturbar o processo de acumulação capitalista. Mas, embora o conteúdo da crise seja sempre o mesmo, suas formas de manifestação são várias o que contribui para o mascaramento da sua natureza intrínseca. Assim, neste caso, o retorno periódico do fenômeno é tratado pela mídia, políticos e acadêmicos ortodoxos sempre de forma isolada, como se fosse algo novo, inédito e surpreendente.
Assim, cada crise passa a ser designada por um nome distinto, normalmente ligado ao setor, ou à atividade, ou aos indivíduos diretamente envolvidos com o epicentro da crise, relacionados a sua forma de manifestação primeira.
A partir da obra de Marx, que demonstrou o conteúdo da crise, suas formas de manifestação teóricas e causas e ilustrou com exemplos e dados retirados de jornais de sua época, o presente artigo buscou repetir este procedimento:
1) A partir do trabalho de sistematização realizado por Ribeiro (2008), apresentar todas as formas teóricas de manifestação da crise, bem como suas causas.
2) Através de um trabalho sistemático de coleta de informações, efetuado nos últimos 2 anos[1], consolidar as evidências empíricas da atual crise, associando-as a sistematização citada no item acima.
Sendo assim, além da seguinte introdução, o presente artigo conterá: no item 2 uma descrição da sistematização das formas teóricas de manifestação da crise, elaborada por Ribeiro (2008), a partir da obra de Marx; no item 3 analisará as causas da crise de superprodução capitalista; no item 4 elucidará as evidências empíricas da atual crise, associando-as as formas teóricas de manifestação mencionadas; no item 5 detalhará as principais conclusões alcançadas pelo trabalho.

2- A crise de superprodução (de capital) e suas formas de manifestação

Marx analisa a crise de superprodução em duas dimensões: em seu conteúdo e em suas formas de manifestação.
A partir da obra de Ribeiro (2008), o presente estudo se deterá em analisar as formas de manifestação do fenômeno crise de superprodução, tendo em vista que o objetivo é demonstrar que a crise atual, denominada de crise do subprime ou crise financeira, apresenta várias destas formas, bem como o seu conteúdo e, portanto, é tão somente uma antiga e recorrente crise de superprodução do capitalismo.
De forma sucinta, o conteúdo da crise consiste em três fatores que ocorrem ao mesmo tempo e tornam a crise de abundância um paradoxo, pois o que se tem é:
i) primeiro, uma capacidade elevada e crescente de produzir mercadorias;
ii) segundo, uma quantidade elevada e crescente de consumidores[2].
Seria perfeito, se as coisas parassem por aí, pois se de um lado se tem mercadorias e do outro lado consumidores, qual é o problema então? É aí que entra o terceiro e último ponto, pois o sistema cria barreiras econômicas ao consumo, seja produtivo, seja pessoal.
O princípio de tudo é a transformação do produto do trabalho humano em mercadoria, criando a contradição primária Valor x Valor de Uso (VxVU) ao que, até então, consistia numa unidade. A evolução deste fenômeno, ao culminar no capitalismo, levou esta contradição a um nível surpreendente, a saber: a contradição entre o caráter social da produção e a forma de apropriação privada capitalista.
Assim, em suas formas de manifestação (conforme irá sendo abordado ao longo do texto) fica patente que a questão fundamental consiste no fato de, no processo evolutivo do modo capitalista de produção, as “soluções” encontradas aos entraves do seu desenvolvimento levarem à separação de elementos que, em essência, formam uma unidade, de modo que, ao afastarem-se além de determinados limites, a unidade destes elementos abruptamente volta a prevalecer. Entretanto, o restabelecimento desta unidade não ocorre de forma harmônica e natural, mas por meio de um violento choque, isto é de uma crise, como afirmado por Marx:

Mas, uma vez que estão interligadas, a afirmação de independência das fases vinculadas só se pode patentear de maneira violenta, como processo destrutivo. É justamente na crise que sua unidade se manifesta, a unidade de elementos opostos. A independência recíproca assumida pelas duas fases conjugadas e complementares destrói-se à força. A crise, portanto revela a unidade dos elementos que passaram a ficar independentes uns dos outros. Não ocorreria crise se não existisse essa unidade interna de elementos que parecem comportar-se com recíproca indiferença (Marx, 1980, V-II, p. 936).

O “germe” da crise existe antes mesmo do surgimento do modo de produção capitalista e reside na mercadoria. Isto se dá pelo fato de na mercadoria, conforme dito antes, a unidade VxVU se tornar um par de contrários dialéticos, dado o fato do produto do trabalho humano se tornar um não-VU para o seu possuidor. O aprofundamento da contradição VxVU, interna à mercadoria, ocorre quando do surgimento do dinheiro, já numa sociedade de produtores individuais de mercadorias.
            A clara identificação e sistematização das várias formas de manifestação da crise, realizada por Ribeiro (2008) a partir do estudo d’O Capital são discutidas a seguir.

2.1) 1ª forma de manifestação da crise: o dinheiro como meio de circulação

A aparição do dinheiro como meio de circulação (para resolver um problema da produção de mercadorias: facilitar as trocas) leva a uma série de conseqüências:
1º) A contradição VUxV interna à mercadoria se externaliza,  transformando-se em Mercadoria x Dinheiro (MxD), tendo em vista que o dinheiro passa a representar o valor de todas as mercadorias. Pode-se notar que o dinheiro, ao representar o valor de todas as mercadorias, tornou visível a contradição VxVU até então interna à mercadoria.
2º) O circuito Mercadoria x Mercadoria (M-M) é substituído pelo circuito Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria (M-D-M), fazendo com que os atos de compra e venda deixem de ser uma unidade, transformando-se numa contradição. Isto se dá pelo fato de em M-M os dois produtores comprarem e venderem ao mesmo tempo, enquanto que em M-D-M, é necessário vender, para, em tendo posse do dinheiro, que possui VU apenas ideal, poder comprar de fato e, só assim, realizar o VU de uma mercadoria qualquer, tendo em vista que o VU do dinheiro é ideal, pelo fato de ele ser tão somente veículo à realização das necessidades[3].
Sendo assim, o surgimento do dinheiro como meio de circulação separa no tempo e no espaço os atos de compra e venda, deixando sempre um determinado número de produtores presos na esfera da circulação. A partir de então, a solução da contradição VxVU, para um produtor qualquer, ocasiona necessariamente o aprisionamento na esfera da circulação de um outro produtor e assim sucessivamente.
Pode-se dizer “que em sua primeira forma, a crise é a metamorfose da própria mercadoria, a dissociação da compra e da venda” (Marx, 1980, V II, p. 945). Contudo, segundo Marx:
A contradição imanente à mercadoria, que se patenteia na oposição entre valor-de-uso e valor, atinge formas de manifestar-se nas fases opostas da metamorfose das mercadorias. Essas formas implicam a possibilidade, mas apenas a possibilidade das crises. Para a conversão dessa possibilidade em realidade é mister todo um conjunto de condições, que não existem, ainda, do ponto de vista da simples circulação das mercadorias (1980, V-I, p. 127).

2.2) 2ª forma de manifestação da crise: o dinheiro como meio de pagamento

Ainda numa sociedade de produtores individuais de mercadorias, surge a segunda forma de manifestação da crise, também no nível das possibilidades. Relacionada ainda ao dinheiro, a segunda forma de manifestação da crise surge em virtude da extensão de suas funções. Além de meio de circulação o dinheiro assume a função de meio de pagamento.
Sob esta função, a presença do dinheiro no ato das trocas é dispensada, pelo menos temporariamente. Como já dito anteriormente, a solução de um entrave, cria problemas subseqüentes, e é exatamente isto que ocorrerá.
Como meio de pagamento, as trocas poderão ser feitas sem a presença imediata do dinheiro, que aparecerá apenas de forma ideal. Deste modo, as trocas serão efetuadas com promessa de pagamento. Assim, um determinado produtor ao vender sem receber dinheiro real, mas tão somente uma promessa futura de pagamento, necessitará, para poder comprar, encontrar outro produtor que repita o seu ato e, assim sucessivamente.  Contudo, esta situação não pode manter-se indefinidamente, de modo que em algum momento dinheiro real terá que ser atraído à esfera da circulação
Com isto, a circulação das mercadorias sofrerá mudanças quantitativas e qualitativas, aumentando a oposição MxD. Do ponto de vista quantitativo porque a liquidação das dívidas por compensação permite a circulação de uma maior quantidade de mercadorias com um montante inferior de dinheiro real. Por outro lado, e de forma mais relevante, a mudança qualitativa consiste no fato da oposição MxD se apresentar a partir de então como autonomia de D em relação à M, que se afastam e parecem autônomos, fazendo com que circulem mercadorias sem circular dinheiro e dinheiro sem circular mercadorias.
Ao investigar esta nova contradição, contida nas funções do dinheiro, Marx destaca:

Enquanto os pagamentos se compensam, serve apenas idealmente de dinheiro de conta ou de medida dos valores. Quando tem de ser efetuados pagamentos reais, a função do dinheiro deixa de ser a de meio de circulação, de forma transitória e intermediária do intercâmbio das coisas materiais, para ser a de encarnar o trabalho social, a existência independente do valor de troca, a mercadoria absoluta... Havendo perturbações gerais no funcionamento desse mecanismo, seja qual for a origem delas, deixa o dinheiro súbita e diretamente a forma ideal, de conta, para virar dinheiro em espécie (1980, V-I, p. 152).

Deste modo, segundo Marx, é na função do dinheiro como meio de pagamento que figura a segunda forma de manifestação da crise:

Em sua segunda forma, a crise é a função do dinheiro como meio de pagamento e então figura em duas fases diferentes, separadas no tempo, em dois papéis diversos (Marx, 1980, V-II, p. 945)

2.3) O desenvolvimento das formas de manifestação do fenômeno crise de abundância no modo capitalista de produção.

Considerando uma sociedade de produtores individuais de mercadorias, as duas formas de manifestação da crise de superprodução, vistas até então, são apenas abstratas, embora para Marx a segunda seja mais concreta que a primeira (1980, V-II, p. 945). Mas, mesmo que o surgimento do dinheiro crie possibilidades à crise, ao modificar e ampliar a contradição VxVU, as limitações da sociedade de produtores de mercadorias não permitem uma superprodução generalizada.
O modo capitalista de produção, ao desenvolver o conteúdo, tornará o fenômeno crise de abundância não uma possibilidade, mas pior que isto, uma necessidade.
Em primeiro lugar, pode-se destacar que a primeira e a segunda formas da crise sofrem grandes alterações, tendo em vista que no modo capitalista de produção o dinheiro como meio de circulação e meio de pagamento deixa de ser simplesmente um instrumento empregado na circulação das mercadorias. No capitalismo, o dinheiro antes de funcionar como meio de circulação das mercadorias, assume a função de meio de circulação do capital.
As implicações dessa modificação nas funções do dinheiro são várias: o ato de circulação do capital exige transações à montante e à jusante e, como o objetivo da produção é a mais-valia, o resultado final significará sempre um valor em escala ampliada.
Além do mais, todo ato de consumo consiste, ao mesmo tempo, num ato de produção, tendo em vista que o consumo produtivo dos capitalistas resulta em mais mercadorias produzidas e o ato de consumo dos trabalhadores, resulta na produção da mercadoria força de trabalho. Segundo Ribeiro (2008, p. 51):

O problema é, portanto muito mais complexo do que pareceria antes. O consumo produtivo dos dois tipos de mercadorias (força de trabalho e meios de produção), não só tem como resultado o lançamento obrigatório de novas mercadorias no mercado, mas também de uma quantidade muito maior, do ponto de vista do valor criado. Aí está a situação: quanto mais mercadorias forem consumidas mais mercadorias serão lançadas no mercado.

Assim, por inúmeros fatores, a circulação M-D-M no modo capitalista de produção assume um caráter totalmente diverso daquele da sociedade de produtores de mercadorias: cada ato de compra e venda envolve um grande número de relações à montante e à jusante, entre produtores diferentes, de pelo menos três mercados distintos (meios de produção, força de trabalho e bens de consumo); o ato de produção envolve o ininterrupto reinício de processos produtivos que terão por conseqüência o contínuo lançamento de mercadorias no mercado.
Além do mais, embora os mercados anteriormente citados funcionem de forma aparentemente independente, os atos de compra e venda, efetuados entre os produtores de cada um deles, guardam entre si determinadas proporções que dependem das necessidades da reprodução do capital, isto é, algo que lhes é exterior (Ribeiro, 2008).
Pode-se adicionar, ainda, o fato de as operações de compra e venda envolverem a mercadoria força de trabalho, com características bastante peculiares, já que é a única produzida a partir do consumo pessoal do seu possuidor. Deste modo, pode-se perceber quão relevante é a modificação provocada no conteúdo M-D-M numa sociedade de produtores capitalistas e, conseqüentemente nas funções do dinheiro.

Mas temos aí meras formas – possibilidades – gerais das crises, por isso também formas abstratas da crise real. Nelas aparece a existência da crise em suas formas mais simples e em seu conteúdo mais simples, até onde a própria forma é seu conteúdo mais simples. Mas ainda não é conteúdo como fundamento concretizado (Marx, 1980, V-II, p. 948).

Todavia, o modo capitalista de produção não apenas altera as formas da crise já existentes com o surgimento da mercadoria e do dinheiro, mas cria várias outras. A partir de Marx, Ribeiro (2008) identifica pelo menos mais cinco formas de manifestação da crise de abundância. O desenvolvimento do conteúdo, ampliando suas formas de manifestação, implicará tornar a crise uma necessidade ao desenvolvimento do sistema.

Mas agora se trata apenas de acompanhar o desenvolvimento ulterior da crise em potencial – a crise real só pode configurar-se a partir do movimento real da produção capitalista, da concorrência e do crédito – enquanto provém das determinações de formas próprias do capital, as quais lhe são peculiares e não se encerram em sua mera existência de mercadoria e dinheiro (Marx, 1980, V-II, p. 948).

Para tanto, se faz necessário aprofundar a análise do fenômeno a partir do movimento de circulação do capital, ou seja, da fórmula D-M-D´ (Ribeiro, 2008).[4]
As duas formas de manifestação da crise, analisadas a seguir, dizem respeito a uma sociedade capitalista onde existe apenas o capital industrial e consiste na existência dos pares de contrários dialéticos: produção x circulação, produção x consumo e características peculiares acerca da forma produtiva do capital. Vejamos cada uma delas.

2.4) 3ª forma de manifestação da crise: contradição produção x circulação.


            Mp
D - M        ... P .... M´ - D ´
            Ft
          
 
A fórmula D-M-D´ não constitui um ato de circulação de mercadorias, mas sim num ato de circulação e reprodução do capital. Assim, a fórmula esconde o processo de transformação M em M´, de modo que no conteúdo verifica-se:



Neste último circuito, diferentemente do primeiro, nota-se que em seu processo de circulação e reprodução o capital terá que necessariamente percorrer as esferas da circulação e da produção, assumindo em cada uma delas as formas necessárias a sua valorização.
O mecanismo é o seguinte: o produtor capitalista em tendo posse do capital-dinheiro precisa transformá-lo em capital-mercadoria, na esfera da circulação. Contudo, estas mercadorias não visam o consumo pessoal do produtor, mas o consumo produtivo, constituindo-se de meios de produção e força-de-trabalho. Porém, na posse destas mercadorias especiais, o capital assumiu a forma produtiva, de modo que só resta ao produtor capitalista uma saída, retirar-se da esfera da circulação para a da produção.
É na esfera da produção que o processo de valorização do capital ocorrerá, por meio do consumo da mercadoria especial força-de-trabalho, que combinada (em determinadas proporções) com os meios de produção, tem o poder de gerar o seu próprio valor e um adicional (mais-valia), apropriado pelo capitalista. Esgotado o processo de produção, restará ao capitalista retornar à esfera da circulação com as novas mercadorias, acrescidas da mais-valia, para enfim transformá-las em capital-dinheiro novamente e assim, ter de volta o seu capital, ampliado pela mais-valia.               
Se de um lado produção e circulação constituem-se em fases indispensáveis ao capital, em seu processo de reprodução e valorização; por outro lado, o mesmo capital não pode assumir simultaneamente as formas M e D (características da circulação) e a forma P (característica da produção). Produção e circulação são dois atos que se excluem, se repelem, ou seja, formam um par de contrários dialéticos.
Assim, surge a terceira forma de manifestação da crise, própria do capital e, consequentemente se desenvolverá obedecendo às mesmas leis que impulsionam o desenvolvimento do capital:

O processo global de circulação ou o processo global de reprodução do capital é a unidade de sua fase de produção e de sua fase de circulação, um processo que abrange dois processos como fases suas. Aí reside nova possibilidade desenvolvida ou forma abstrata da crise (Marx, 1980, V-II, p. 948).

2.5) 4ª forma de manifestação da crise: contradição produção x consumo (capital produtivo).

Conforme foi visto anteriormente é na forma produtiva (P) do capital que a mais-valia é gerada. Isto se dá através do consumo produtivo, que ao combinar os meios de produção com a mercadoria força de trabalho, capaz de criar um valor superior ao de sua reprodução, produz mais-valia para o capitalista.
Mas, o consumo produtivo do capitalista, constitui-se ao mesmo tempo em ato de produção, já que para manter-se capitalista, o produtor necessitará lançar ininterruptamente na esfera da circulação uma quantidade crescente de mercadorias, adicionada de mais-valia.
Contudo, se produção e circulação formam uma unidade; de outro lado se repelem e se opõem. A oposição é percebida pelo fato do capital produtivo não poder produzir o que consome, nem tão pouco consumir o que produz. A conseqüência desta oposição entre produção e consumo, é que necessariamente terá que haver atos externos a ambos, isto é, atos de compra e de venda à montante e à jusante, de atos de circulação.
O movimento de circulação do capital envolverá não apenas D, mas M também, que são nada mais que formas específicas do capital na esfera da circulação. Sendo assim, M passará a assumir funções de D:

Certas funções inerentes à D, como meio de circulação, serão então ampliadas e estendidas igualmente à M, quando ambos se transformam em formas de existência do capital, na esfera da circulação e, portanto, em meios de circulação do capital (Ribeiro, 2008, p. 64).

Para a mercadoria força de trabalho, a questão é semelhante, tendo em vista que ao ser remunerada com o salário, os trabalhadores o empregarão no consumo pessoal e, consequentemente à produção de mais mercadorias, neste caso a mercadoria força de trabalho.
Mas, se o consumo dos trabalhadores é ao mesmo tempo produção, esta unidade forma um par de contrários dialéticos, tendo em vista que os trabalhadores não produzem o que consomem, nem tão pouco, consomem o que produzem. Assim, a contradição produção x consumo, existe para a produção de qualquer mercadoria existente no modo capitalista de produção, tornando com isto “o processo capitalista de produção de mercadorias, indissoluvelmente ligado ao processo capitalista de circulação de mercadorias” (Ribeiro, 2008, p. 65).

A contradição entre produção e consumo existente na produção de mercadorias, para ser resolvida, impulsiona o capital para a esfera da circulação onde ele dispõe de duas formas de manifestação, M e D, pois uma vez produzida, M deve ser consumida, mas não o pode ser pelos seus produtores. Ao chegar à circulação, o capital apresenta-se inicialmente como M´. Esta forma M´ é portadora do acréscimo do valor, a mais-valia, extorquida pela ação do capital produtivo. Mas, sob a forma M´, este mais valor para nada serve, pois a oposição entre produção e consumo torna as mercadorias produzidas não-valores de uso para seus produtores. (Ribeiro, 2008, p. 65).

2.6) O surgimento do capital comercial como fator potencializador da crise de superprodução.

O surgimento do capital comercial amplia a contradição produção x circulação, denominada anteriormente como a 3ª forma de manifestação da crise de abundância, ao tornar autônomo o comportamento do capital sob a forma mercadoria na esfera da circulação. Separando a circulação da produção, o capital comercial, leva a oposição entre ambas a sua forma plena, absoluta.

O capital comercial, portanto nada mais é do que o capital-mercadoria que o produtor fornece e tem de passar por processo de transformação em dinheiro, de efetuar a função de capital-mercadoria no mercado, com a diferença apenas de que essa função, em vez de ser operação acessória do produtor, surge como operação exclusiva de variedade especial de capitalistas, os comerciantes e, adquire autonomia com negócio correspondente a um investimento específico (MARX, 1894, L-III, V-V, p. 313).

Desta forma, ampliam-se as possibilidades do fenômeno da crise, pois conforme Marx demonstrou, contra a separação dos contrários prevalecerá sua unidade:

Apesar do caráter autônomo que possui, o movimento do capital mercantil nada mais é que o movimento do capital industrial na esfera da circulação. Mas, em virtude dessa autonomia, o capital mercantil move-se até certo ponto sem depender dos limites do processo de reprodução e por isso leva este a transpor os próprios limites. A dependência interna e a autonomia externa fazem o capital mercantil chegar a um ponto em que surge uma crise para restaurar a coesão interior (MARX, 1894, L-III, V-V, p. 350).

A partir de então um grupo especial de capitalistas, que atua apenas na esfera da circulação, restringindo-se a proceder a metamorfose do capital na forma mercadoria à forma dinheiro e vice-versa, passa a operar de modo independente e desvinculado do processo de produção e, mais ainda, a ter direito a lucro.
Então, o aparecimento dos capitalistas comerciais leva à ilusão de que a geração de lucros não está condicionada ao processo de produção. Contudo, Marx mostra que esta evidência é de fato um engano, tendo em vista que o lucro do capital comercial consiste tão somente numa parcela da mais-valia criada pelo capital industrial à medida que assume a forma produtiva (P), única capaz de gerar mais-valia. Esta cifra da mais-valia dividida com os capitalistas comerciais deve-se ao fato de sua ação aumentar o processo de rotação do capital e, consequentemente a massa de mais-valia gerada. Deste modo, dando uma contribuição maximizadora ao processo de reprodução do capital, o capital comercial se beneficia de um pedaço do excedente que é criado, em ações externas a sua existência.
O ciclo do capital comercial consiste em D – M – D´, isto é, o capitalista comercial em tendo posse do dinheiro, compra mercadorias e, as vende por uma soma de dinheiro superior ao montante inicial, parecendo que os valores-de-uso foram vendidos acima do seu valor. Mas, conforme explicitado anteriormente não é isto que ocorre de fato.
Assim, o movimento autônomo do capital comercial na esfera da circulação cria modificações significativas no processo de produção capitalista:
1º) A realização das mercadorias, as expulsa do mercado, ou seja, da esfera da circulação. Assim, ou a mercadoria está no mercado e não realizou o seu valor, ou realizou o seu valor e, portanto foi expulsa do mercado, isto é, realização e circulação formam um par de contrários dialéticos.
O capital mercantil provoca alterações nesta contradição, tendo em vista que as mercadorias são vendidas ao capitalista comercial, mas permanecem no mercado. Isto ocorre em detrimento do valor-de-uso destas mercadorias para o comerciante não constituir à realização de uma necessidade pessoal, mas possuir o valor-de-uso ideal do dinheiro, que é lhe conferir lucro. Sendo assim, o comerciante sabe que se empregar as mercadorias que adquiriu a fim de satisfazer qualquer necessidade pessoal, o seu capital na forma de mercadoria (KM) não lhe renderá lucro, de forma que não alcançará seu objetivo real, enquanto capitalista da esfera da circulação.
2º) A venda das mercadorias dos capitalistas industriais aos capitalistas comerciais, libera os primeiros à continuidade do processo, podendo recomeçar o ciclo novamente, contudo estes últimos permanecem na esfera da circulação lotados de mercadorias, à espera dos donos que de fato realizarão seus valores-de-uso.
Enquanto, o surgimento do capital comercial, parece ter resolvido a contradição realização x circulação, isto de fato não ocorreu, de modo que só no nível das aparências detecta-se tal dissolução, pela exacerbação da unidade entre eles. Segundo Ribeiro (2008, p.71):
Se supusermos a existência de uma rede de comerciantes intermediários, a situação se torna ainda mais complexa, pois poderemos observar a sucessiva “realização” das mercadorias, sem que elas se retirem do mercado. Tudo funciona como se tivesse desaparecido a contradição circulação e realização do valor. E do exclusivo ponto de vista do capital comercial, esse movimento poderia prolongar-se eternamente. Tal é a situação paradoxal criada.

O capital comercial ao separar no tempo e no espaço a realização do valor das mercadorias, da realização dos seus valores-de-uso, ao ampliar a contradição produção x circulação e modificar a contradição circulação x realização, irá contribuir na ampliação das possibilidades da crise, levando-as do campo abstrato para o real. Conforme já dito anteriormente, toda vez que a dinâmica do sistema, em seu processo natural de evolução das forças produtivas, busca sanar um problema, ele apenas consegue ampliar as contradições. O surgimento da mercadoria-capital dará prosseguimento a este processo levando-o ao ápice.

2.6) O surgimento do capital bancário e a mercadoria capital como elemento que levará o fenômeno da crise do nível das possibilidades a se tornar uma necessidade ao processo de reprodução capitalista.

De acordo com o sub-item anterior, o nascimento do capital mercantil, faz surgir uma categoria de capitalistas que atua restritamente na esfera da circulação, com o seu capital na forma de capital-mercadoria (KM), trazendo uma série de alterações nas contradições inerentes a dinâmica de funcionamento do modo capitalista de produção. O surgimento do capital bancário e da mercadoria-capital também provoca um aumento substancial nas contradições existentes no sistema.
O fato da mais-valia materializar-se no corpo do dinheiro, quando da metamorfose de M´ por D´, ou seja do dinheiro representar o valor, leva a crença de que o dinheiro por si só é capaz de gerar mais-valia. Com isso, o dinheiro passa a ser o próprio objetivo do processo de produção, numa escala sempre ampliada.
Deste modo a contradição produção circulação assume uma dimensão ainda maior que aquela assumida quando do surgimento do capital mercantil. A separação circulação x produção agora ocorre em detrimento da autonomização da forma D, com o surgimento do capital bancário.
Como o dinheiro é a forma em que se inicia qualquer atividade econômica e, principalmente a forma como se materializa o lucro, por ser capital-dinheiro, ganha um novo valor de uso, que é o de gerar lucro, tal qual a mercadoria força de trabalho. Isto implicará em várias conseqüências ao modo capitalista de produção, figurando no ingrediente que faltava para tornar a crise de abundância um fenômeno não apenas real, mas necessário:
1) Com a mercadoria-capital surge um novo mercado, o mercado de capitais, que permitirá sua negociação e, funcionará juntamente com os mercados já mencionados: o de meios de produção, o de bens de consumo e o de força de trabalho.
2) Nascerá também uma nova categoria de capitalistas, que de modo semelhante aos comerciantes, agirá apenas na esfera da circulação; só que neste caso transacionando tão somente com o dinheiro. De forma curiosa, o ciclo desta modalidade de capital[5] se resume a D- D´, isto é, exibe uma relação de algo consigo mesmo, independente da produção e da circulação.
3) A mercadoria-capital possui uma série de características bastante peculiares:
3.1- Sendo uma mercadoria se constitui em um não VU para o seu possuidor, que deverá vendê-la. Contudo, a venda desta mercadoria ocorre de modo diverso das demais, ou seja, através de empréstimo.
3.2- Ao ser vendida, a mercadoria-capital se torna um VU não apenas para quem a comprou, mas também para quem a vendeu.
3.3- A mercadoria-capital possui um preço especial denominado de juro, o qual por sua vez é determinado pela oferta e demanda no mercado de capitais.
3.4- Conforme foi visto, todo ato de consumo do sistema constitui um ato de produção, mas pelo menos temporariamente a venda das mercadorias desafoga a esfera da circulação. O mesmo não ocorre com a mercadoria-capital, tendo em vista que ao ser vendida, esta não se destrói no consumo, mas se fortalece e retorna aumentada ao mesmo mercado de onde partiu, exigindo a continuidade do seu movimento.
3.5- Em virtude da característica anterior, existe uma pressão permanente e crescente da oferta, que para evitar sua superprodução, gera a necessidade de ampliar constantemente a sua demanda. Segundo Ribeiro (2008, p. 79):

Resumindo, podemos dizer que as características de D, como mercadoria-capital, de reproduzir-se ao ser consumida e aumentar de valor, de retornar ao seu antigo possuidor, de ser VU para o comprador e, depois da venda, VU para o vendedor, e de só poder existir em constante movimento, retornando sempre ao mesmo mercado de onde partiu, faz com que ela exerça uma permanente pressão sobre a oferta no seu mercado específico.
Consequentemente, uma característica desse mercado, a pressão permanente e crescente da oferta, provocada pela própria natureza do dinheiro como mercadoria-capital. Sendo assim, a única forma de não ocorrer superprodução será a criação, em contrapartida, de uma procura que cresça nas mesmas proporções e ao mesmo ritmo. Esse é o problema.

Deste modo, qualquer evento que culmine na falta de demandantes à mercadoria-capital, ou seja, de capitalistas dispostos a tomarem-na emprestada, pagando em contrapartida o seu preço, isto é o juro, levará a uma interrupção do movimento desta, fazendo com que a mercadoria-capital negue sua própria essência, o que culminará numa superprodução de capital:
Superprodução de capital, não de mercadorias isoladas – embora a superprodução de capital implique sempre superprodução de mercadorias – nada mais significa que superacumulação de capital (MARX, 1894, L-III, V-IV, p.288).

Conforme já mencionado antes o capital em sua marcha completa é formado pela unidade do processo de produção e do processo de circulação, de modo que cada uma destas etapas exercerá papel peculiar à geração e realização da mais-valia e, consequentemente no processo de reprodução capitalista. Como Marx evidenciou cada forma assumida pelo capital possui um papel único, ora de gerar a mais-valia (função do capital em sua forma produtiva), ora de realizá-la (função do capital nas formas dinheiro e mercadoria). Então, contra a autonomização da forma D (capital bancário) e da forma M (capital mercantil), prevalecerá a unidade das 3 formas do mesmo conteúdo, através de uma crise.
O surgimento do Capitalismo modificou substancialmente as funções do dinheiro, ampliando a contradição VxVU, além criar outras contradições. Por sua vez, o desenvolvimento das forças produtivas sob o Capitalismo, ampliaram substancialmente as contradições nascidas consigo, conferindo-lhes uma dimensão ainda maior. O nascimento dos capitais mercantil e bancário aumentaram significativamente a magnitude da 3ª e 4ª formas de manifestação da crise, a contradição produçãoxcirculação e a contradição produçãoxconsumo.

As várias formas que o capital assume, em seu movimento, o surgimento das mercadorias especiais força de trabalho e da mercadoria-capital, o complexo quadro de conexões que se estabelecem entre o capital industrial, o capital comercial e o capital bancário, criam uma infinidade de contradições que abrem caminhos, vias, meios de manifestação e propagação da crise, transformando-a de fenômeno possível em fenômeno real (Ribeiro, 2008, p. 88).

Só para destacar, é importante frisar ainda que o surgimento destas duas categorias de capitalistas contribuiu ainda na ampliação do conflito distributivo, pelo fato de ter aumentado o número de classes sociais que passaram a lutar por uma fatia da riqueza produzida.

3- A causa da crise

A crise emerge como excesso de oferta sobre a demanda e, por isso o termo crise de superprodução. Nos primórdios do desenvolvimento da ciência econômica, Malthus foi o primeiro a perceber que o capitalismo tendia a gerar como fenômeno a superprodução. Mas, na difusão do pensamento econômico predominou aqueles que defenderam a Lei de Say, que apregoava que a oferta gera sua própria demanda e, que desequilíbrios entre oferta e demanda, só ocorreriam de forma parcial, nunca sistêmica. Ao reconhecer a “insuficiência de demanda efetiva”, outro termo empregado ao problema, Keynes remontou Malthus e lamentou que a ciência econômica tivesse escolhido a Lei de Say como premissa ao comportamento do capitalismo.
Antes de analisar as causas da crise, conforme Marx, é válido abrir espaço para analisar de forma mais acurada o termo “superprodução”. Como se sabe, quando a crise eclode, embora o mercado esteja lotado de mercadorias que não encontram comprador, existe por sua vez, um número representativo de indivíduos incapazes de satisfazer suas necessidades. Isto quer dizer, que a superprodução ocorre sem que as necessidades sociais sejam atendidas plenamente, pelo fato da demanda sob o capitalismo não está condicionada à realização das necessidades, mas só pode participar desta quem possuir capacidade econômica para tal, isto é, a procura é uma “procura solvente”.
Como conseqüência se cria um paradoxo, ou seja, a superprodução ocorre ao mesmo tempo em que uma parcela significativa das pessoas não consegue realizar minimamente suas necessidades de consumo:

Desse modo, não há qualquer incompatibilidade entre superprodução, de um lado, e, de outro, existência de potenciais consumidores insatisfeitos. Pelo contrário, a superprodução se dá em simultâneo com o crescimento da fome, da miséria, do desemprego, das falências etc. Ela é o resultado do conflito entre o desenvolvimento das forças produtivas, sob o capitalismo, e os limites impostos pelo lucro do capital. Ela é uma superprodução capitalista de mercadorias (Ribeiro, 2008, p. 100).

Neste sentido Marx destacou como um equívoco denominar a crise econômica do capitalismo de crise de superprodução. Como se pode afirmar que o problema é produção em excesso, se existe um exército de consumidores insatisfeitos, incapazes de satisfazer suas necessidades mais básicas?

A palavra superprodução em si mesma induz a erro. Sem dúvida, não se pode em absoluto falar de superprodução de produtos – no sentido de o volume dos produtos ser excessivo em relação às necessidades deles – enquanto as necessidades mais prementes de grande segmento da sociedade não são satisfeitas ou são satisfeitas apenas as mais imediatas (Marx, 1980, V-II, p.962).

Feito os devidos esclarecimentos acerca da denominação empregada para caracterizar o fenômeno em estudo, cabe se deter à análise de suas causas. Conforme já dito, a crise parece ser um problema de proporcionalidade, ou seja, do tamanho da oferta ser maior que o da demanda. Partindo desta hipótese muitas são as teorias que buscam esclarecer porque este desequilíbrio ocorre, dentre as quais, podem-se destacar as teorias que apontam o subconsumo, a anarquia da produção e a contradição produção-consumo, como causas da crise. Contudo, o presente estudo partirá da idéia que se tem algo mais complexo, de maneira que os fatores anteriormente mencionados consistem tão somente na aparência de algo que integra a essência do modo capitalista de produção.
Para demonstrar que a crise no capitalismo é inerente a sua essência de modo que para destruí-la é necessário acabar com o próprio sistema, será feita uma análise estritamente na forma praticamente consensual de vê-la: excesso de oferta em relação à demanda. Assim, ver-se-ão as possibilidades de controlar a oferta e a demanda, em níveis compatíveis com o equilíbrio entre ambas.

3.1) Tentativas de controlar a oferta.

Neste caso, o desafio que se desenha constitui em controlar a oferta ao nível da demanda solvente (ou demanda efetiva, segundo Keynes). Neste sentido, o problema que surge, antes mesmo de buscar os meios de controlar a oferta, é determinar o nível da procura solvente. A produção sob o capitalismo assume um grau de especialização tão elevado que passa a ser organizada em mercados distintos (pelo menos quatro: o de bens de consumo, o de meios de produção, o de força de trabalho e o mercado de capitais) e, seus elementos têm uma grande autonomia (ao menos em nível das aparências).
Do ponto de vista técnico, o desafio torna-se praticamente impossível. Mas, a fim de estender a análise, será considerado que se encontre meios de determinar o nível de demanda solvente, de modo a ser possível fixar a oferta.
A determinação da oferta em sintonia com a demanda exige não apenas a fixação do volume total de produção, mas para cada mercadoria individualmente. A experiência socialista, em uma economia planificada, mostrou o grau de dificuldade e complexidade desta tarefa.
Em seu modelo de reprodução ampliada, Marx demonstrou que à satisfação das condições de equilíbrio, exigia o estabelecimento de um elevado grau de abstração, com hipóteses extremamente simplificadoras. E, no final das contas, ele foi obrigado a se desfazer de uma daquelas hipóteses, para que o modelo tivesse solução, a saber: a inexistência do crédito, isto é, sem o crédito, nem temporariamente, o sistema apazigua suas contradições.
O controle da oferta no nível da demanda solvente é simplesmente impossível sob o capitalismo devido à independência das decisões de produção, tomadas individualmente por cada empresário. A planificação da produção em cada empresa individualmente só assume um caráter social a posteriori, no mercado. Desse modo, os interesses dos empresários chocam-se uns com os dos outros, dado o fato de cada um solitariamente buscar determinar o seu preço de produção individual num patamar inferior ao preço de mercado, conhecido ex post. O meio empregado por cada um, para alcançar seu objetivo, resulta numa concorrência exacerbada, que por sua vez põe em ação o aumento crescente da produtividade, do progresso técnico, do volume produzido, do desemprego.
Quanto aos bens de consumo, além do que já foi mencionado, soma-se um elemento diverso. A demanda por bens de consumo está diretamente ligada ao poder de compra dos assalariados, que por sua vez reage inversamente ao aumento da extração da mais-valia e do desemprego. Então a concorrência e o progresso técnico, inerentes ao desenvolvimento do capitalismo, vão de um lado contribuir para o aumento do volume de produção mas, sob a negativa de restringir a demanda, pelo aumento do desemprego e da queda relativa dos salários.

É igualmente impossível impor comportamentos a capitalistas ou a grupos de capitalistas na sociedade da “livre empresa”. Se em cada empresa, dentro dos seus horizontes, cada capitalista organiza e planifica suas atividades, no conjunto da sociedade essa planificação não existe nem poderia existir, pois a planificação individual é incompatível com qualquer planificação geral. Pelo contrário, desenvolve-se a mais selvagem concorrência entre as diversas empresas (Ribeiro, 2008, p. 122)

Para a mercadoria-capital, as dificuldades não são diferentes; pelo contrário, dada a sua natureza. Conforme foi visto, o valor-de-uso da mercadoria-capital consiste não apenas em manter o seu valor, mais ampliá-lo incessantemente. Além do mais, a comercialização da mercadoria-capital torna-se função de capitalistas exclusivos, que vivem em função desta, inseridos na lógica da “livre empresa”.
A incapacidade de controlar a oferta fica patente quando se nota que nem mesmo o processo de centralização do capital, reduzindo o volume ofertado em diversos setores a um número reduzido de empresas, conseguiu sanar o problema. E, isto se dá pelo fato de mesmo que seja uma ou um ínfimo número de empresas a ofertar um determinado bem no mercado, facilitando a determinação da oferta em consonância com a demanda, a lógica norteadora da produção continua sendo a mesma: a obtenção de lucros, visto que a propriedade dos meios de produção permanece privada.
A clareza de Keynes sobre o fato de que qualquer tentativa de controlar a oferta se choca com a propriedade privada dos meios de produção, conduziu-o a defender a intervenção direta do Estado sobre a demanda e, não sobre a oferta. Para Keynes, a política fiscal deveria ser executada por meio de gastos que resultassem em obras públicas. Embora as obras do governo em infra-estrutura possam ser consideradas oferta, não se choca, nem interfere, com a oferta das empresas privadas, ao contrário, a estimula.

3.2) Tentativas de controlar a demanda.

A crise se apresenta como um problema de subconsumo, mas o curioso é que normalmente na fase que antecede seu estouro, considerado como o período de “boom”, tem-se taxa acelerada de acumulação de capital, aumento dos salários, queda do desemprego e, consequentemente elevação do consumo. Assim, sendo o subconsumo a causa da crise, o problema poderia ser resolvido com medidas de política econômica que auxiliassem na elevação do consumo pessoal, do consumo produtivo ou de ambos.
A tentativa de elevar o consumo pessoal poderia se pautar por meio de políticas de distribuição da riqueza, já que a grande massa de consumidores potenciais de bens de consumo é constituída por trabalhadores assalariados. Contudo tal medida esbarra no antigo conflito distributivo de aumentar v (capital variável) em detrimento de m (mais-valia). Sendo, o processo capitalista de produção concebido com a finalidade de produzir mais-valia, sendo a produção de valores-de-uso apenas um meio vulgar de alcançar o real objetivo, a política é inviável ao processo de reprodução e ampliação do capital.
Qualquer política que acarrete queda da mais-valia e, consequentemente dos lucros, causará retração dos investimentos e, por conseguinte queda do consumo produtivo.
Outro meio de elevar o consumo, consiste em medidas que elevem o consumo dos capitalistas, ou seja, o consumo produtivo. Considerando que isto ocorrerá através do crédito, para descartar a idéia já de início que os salários fossem afetados. Esta medida também não se sustenta por muito tempo, pois à medida que os capitalistas elevam seu consumo produtivo, fazendo novas inversões, a tecnologia não se mantém estática. Assim, o progresso técnico, ao elevar a produtividade do trabalho, culminará, de um lado, num aumento da produção e, de outro, na queda relativa da parcela destinada aos salários.
Num prazo médio se volta à situação anterior, mas em um nível mais grave, pelo maior volume de produção, resultando no “inesperado”, crescimento da oferta, redução relativa da demanda e, com isso o desestímulo ao investimento, enfim, a crise.
Desta forma, as tentativas de evitar a discrepância entre a oferta e a demanda não são passíveis de solução pelo controle desta última. A manutenção da mais-valia, ao estimular a produção em escala crescente só adia o desequilíbrio, sendo este patenteado pela reversão de sua trajetória ascendente.

A barreira efetiva da produção capitalista é o próprio capital: o capital e sua auto-expansão se patenteiam ponto de partida e meta, móvel e fim da produção; a produção existe para o capital, ao invés de os meios de produção serem apenas meios de acelerar continuamente o desenvolvimento do processo vital para a sociedade dos produtores. Os limites intransponíveis em que se podem mover a manutenção e a expansão do valor-capital, a qual se baseia na expropriação e no empobrecimento da grande massa dos produtores, colidem constantemente com os métodos de produção que o capital tem de empregar para atingir seu objetivo e que visam ao aumento ilimitado da produção, à produção como fim em si mesma, ao desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho. O meio – desenvolvimento ilimitado das forças produtivas sociais – em caráter permanente conflita com o objetivo limitado, à valorização do capital existente (Marx, 1894, L-III, V-IV, p. 287/288).

Pode-se destacar que as tentativas de controlar a demanda já foram empregadas e, o processo histórico de desenvolvimento no capitalismo demonstrou sua ineficácia à anulação da tendência à “superprodução”. Tendo o economista John Maynard Keynes, no período da Grande Depressão diagnosticado o problema do capitalismo à insuficiência de demanda efetiva, criou um receituário para que o Estado atuasse no sentido de evitar que tal ocorresse. A atual crise e várias outras que sucederam a Grande Depressão (anos 70, 80 e 90), elucidam a incapacidade do Estado de sanar o fenômeno, comprovando que o problema não constitui na solução apontada por Keynes, mas, mais que isto, no seu diagnóstico sobre qual é a real causa da crise.
A partir do exposto pode-se depreender que sob o capitalismo não é possível controlar nem a oferta, nem a demanda, de modo a mantê-las em níveis compatíveis com o equilíbrio. Isto ocorre pelo fato, de ambas serem determinadas por forças que lhe são exteriores e determinam a essência do próprio sistema. Deste modo, a busca pelos determinantes de causa da crise deve ultrapassar a análise do fato tal como aparece (oferta maior que a procura).
Pode-se até acrescentar que o controle da demanda pode ser dado, mas em caráter estritamente transitório, passageiro; todavia, o controle sobre a oferta é impossível.
Para além de um problema de excesso de oferta, a crise no capitalismo é causada pela contradição existente entre o caráter social da produção capitalista, associado à apropriação privada dos meios de produção.
Assim, se de um lado o constante processo de desenvolvimento das forças produtivas, ao elevar constantemente o processo de divisão social e técnica do trabalho, especializa a produção, tornando-a crescentemente socializada, de outro lado, o objetivo da produção no capitalismo não é ampliar a riqueza social, nem tão pouco suprir as necessidades sociais, mas tão somente produzir lucro. Reduzir o objetivo da produção à apropriação da mais-valia decorre do fato da propriedade privada dos meios de produção e isto determinará o movimento do capital:

É próprio do modo de produção capitalista a tendência para o desenvolvimento absoluto das forças produtivas... Esse movimento tem como conseqüência tornar cada vez mais social a organização do trabalho e o próprio processo produtivo. Cada mercadoria produzida quer seja bem de consumo ou meio de produção, é, cada vez mais, o produto de milhares de trabalhadores ligados entre si por relações invisíveis, das quais não têm conhecimento. Até as funções de organização e direção da produção são abandonadas pelo capital e passam a ser delegadas a novas camadas de assalariados, técnicos das mais diferentes especialidades, gerentes, diretores, etc. O capital encarna, cada vez mais, uma forma social formidável, capaz de promover o desenvolvimento ilimitado das forças produtivas e da produção.
No entanto, todas essas potencialidades não estão serviço das necessidades sociais. O objetivo da produção capitalista não é aumentar a riqueza social mas sim produzir lucro (Ribeiro, 2008, p. 132).

Embora a crise surja como sendo causada por inúmeros desajustes, com teorias diversas apontando como causa da crise fatores diversos, a saber: desproporcionalidade entre os diversos ramos, anarquia da produção, subconsumo, excesso de oferta etc., ela decorre tão somente da contradição entre o caráter social da produção e a forma de apropriação privada capitalista. “É esta a causa fundamental das crises de superprodução e é por isso que tais crises são inerentes ao capitalismo, são uma lei econômica desse sistema (Ribeiro, 2008, p. 133)”. Segundo Marx (1894, L-III, V-IV, p.297) “a taxa de lucro é a força propulsora da produção capitalista, e só se produz o que se pode e quando se pode produzir com lucro”.

O objetivo do capital não é satisfazer as necessidades, mas produzir lucro, alcançando essa finalidade por métodos que regulam o volume da produção pela escala da produção, e não o contrário. Por isso, terá sempre de haver discrepância entre as dimensões limitadas do consumo em base capitalista e uma produção que procura constantemente ultrapassar o limite que lhe é imanente (Marx, 1894, L-III, V-IV, p. 294).

4- Formas de manifestação da crise atual X formas teóricas de manifestação da crise em Marx

Como se sabe, a crise atual eclodiu no sistema financeiro mundial, em conseqüência, mais precisamente, da insolvência no sistema financeiro norte-americano. Após a crise imobiliária dos anos 1970-80, o sistema financeiro dos Estados Unidos encontrou um novo modo de tornar rentável o financiamento de imóveis, que nos moldes do sistema de poupança tradicional é, de um lado, viabilizado com passivos bancários de curto prazo (os depósitos de poupança) que financia um ativo de longo prazo para o banco, a hipoteca, que terá como garantia o próprio bem, alvo da transação. Nestas condições, as instituições financeiras privadas não se sentiam estimuladas em atuar no mercado de financiamento imobiliário.
Foi buscando resolver este entrave que o sistema financeiro norte-americano foi fortemente modificado, dando origem a um movimento especulativo de proporções incomensuráveis. Com as mudanças ocorridas, os bancos puderam transformar o passivo dos clientes (hipotecas) que adquiriam residências em títulos de elevada liquidez, que eram negociados em todo o sistema financeiro mundial. Não bastando, a emissão de títulos deixou de estar condicionada à venda de imóveis, atrelando-se simplesmente a outros papéis, de modo que a riqueza financeira passou a crescer numa escala muito maior que a riqueza material.
Quando os mutuários norte-americanos começaram a falhar com os seus pagamentos, ainda em 2006, todas as instituições e pessoas que possuíam algum ativo atrelado ao financiamento imobiliário foram atingidos. O ano de 2007 assistiu a tentativa destes investidores financeiros de contornar a situação, buscando livrar-se dos papéis, transformando-os em dinheiro real, resultando deste movimento coletivo a crise, que se apresentou com toda a sua força e violência.
A partir do descrito pode-se identificar, do total de contradições explicitadas no item 2, no mínimo duas:
A primeira diz respeito ao dinheiro como meio de pagamento. De acordo com Marx, o dinheiro ao ser usado como meio de pagamento amplia a contradição VxVU ao levar à autonomização de D em relação a M, permitindo que circulem mercadorias sem a necessidade de dinheiro e vice-versa. Para que isto se torne possível para um agente se faz necessário que outro esteja disposto a vender com promessa de pagamento e, assim sucessivamente.
Contudo, embora o uso de “dinheiro ideal” permita uma série de transações que se constituem em uma cadeia crescente de promessas de pagamento, em algum momento dinheiro real deve ser atraído à esfera da circulação, sob pena de ser necessária uma crise para restabelecer as contradições dentro de níveis aceitáveis, mantendo os contrários no limite da distância permitida.
A outra contradição, patente nas formas de manifestação que deram origem à crise em marcha, diz respeito à contradição produção x circulação, denominada de 3ª forma de manifestação da crise, e a sua ampliação em decorrência do surgimento da mercadoria-capital e do capital bancário.
A autonomização da forma D, na esfera da circulação, permitiu à mercadoria-capital valorizar-se à revelia do processo produtivo. Assim, o sistema financeiro levou a mercadoria-capital a se valorizar num montante equivalente a um múltiplo do estoque de riqueza material.
Enquanto este movimento durou, para os desconhecedores da teoria marxiana, parecia de fato que o processo de valorização do capital tinha sofrido pleno descolamento do processo de produção. Mas, sendo o processo de circulação e de produção uma unidade, em determinado momento a contradição terá que ser restaurada. Foi em virtude deste processo de valorização descolado da geração de riqueza material, que ao ser deflagrada a crise, os papéis perderam quase que completamente o valor que possuíam.
A contaminação da crise na esfera financeira para a real também denota que os processos de produção e circulação só estão independentes de forma aparente, estando na essência intimamente relacionados, tendo em vista à necessidade de ambos à reprodução do capital.
Antes de qualquer coisa, o valor das companhias nas bolsas de valores, no mundo inteiro, sofreu uma grande retração, rompendo a trajetória ascendente, para uma descendente. Desta forma, impactou o estoque de riqueza das companhias e dos agentes que possuíam sua riqueza sob a forma de ações e títulos.
Nesta crise o mecanismo de propagação do fenômeno para o lado real da economia se deu da seguinte forma: a retração do crédito para a construção civil reduziu o ritmo de atividade neste setor, o qual já vinha sofrendo desaceleração já em 2006, antes mesmo da deflagração do colapso, contribuindo inclusive para tal.
Se de um lado o crédito para a construção caiu significativamente, do outro, nem que os empresários da construção civil tivessem crédito disponível resolveria o problema. Com a crise instalada, a reversão do processo de especulação no mercado imobiliário norte-americano provocou uma queda brusca no preço das residências, tendo em vista que uma parcela substancial dessa valorização se devia não há fatores reais, mas meramente especulativos. Associado a isto, a demanda por imóveis caiu sensivelmente, de forma que a oferta passou a ultrapassar em número considerável a procura, deprimindo ainda mais o preço das casas.
O crédito para o consumidor também foi restringido, bloqueando a possibilidade de rolagem da dívida, já que os norte-americanos eram totalmente dependentes do crédito, para rolar a dívida passada e, permitir por meio de mais crédito o consumo presente. Com a restrição creditícia, caiu sensivelmente o consumo de bens duráveis (automóveis, eletroeletrônicos, eletrodomésticos etc.).
Com a queda na demanda, a reação imediata das empresas consiste em reduzir a produção e, consequentemente o número de empregados, o que por sua vez, maximiza os impactos negativos sobre a demanda, ampliando-o.
Neste sentido, é possível denotar mais uma forma de manifestação da crise, a saber: a contradição entre produção e consumo. De acordo com esta todo consumo no modo capitalista de produção consiste ao mesmo tempo em produção, em decorrência do consumo produtivo dos capitalistas resultar na produção de mais mercadorias e do consumo pessoal dos trabalhadores implicar na produção da mercadoria força de trabalho. A contradição é denotada em virtude de no consumo produtivo, o capital produtivo não poder consumir o que produz, nem produzir o que consome, ocorrendo o mesmo à mercadoria força de trabalho. Em decorrência desta contradição fica patente que os atos de produção e consumo no capitalismo exigem medidas e comportamentos exteriores a si mesmos, implicando, necessariamente em atos a montante e a jusante.
Sendo assim, em virtude da contradição entre produção x consumo, uma queda no consumo, tem como efeito inevitável uma queda na produção, tendo em vista o fato de na essência ambos formarem uma unidade, mas que se repele, se opõe. Por sua vez, e não sendo diferente, a queda da produção, ocasionará naturalmente a queda do consumo. Ou seja, da mesma forma, que nas fases de expansão estes dois atos (produção e consumo) são alimentados de forma conjunta, tendo em vista que um, implica necessariamente no outro; nas fases de contração, o efeito é o mesmo, só que às avessas.
A redução na produção de imóveis e bens de consumo traz outras conseqüências graves, além das já citadas anteriormente. Como a cadeia produtiva está plenamente subdividida, a diminuição na produção de qualquer mercadoria, gera uma diminuição na produção de uma série muito maior de várias outras. Toda a cadeia produtiva, de insumos e bens de capital, terá suas encomendas reduzidas ou anuladas e, assim os fornecedores de tais setores também reduzirão o ritmo de atividade. Desta forma, basta algum tempo para que toda a atividade econômica sinta os efeitos recessivos do fenômeno.
Como já mencionado, os atos de produzir e consumir ao formarem uma unidade, levam necessariamente a um comportamento singular. Da mesma forma, que nas fases de expansão esta característica figura como algo positivo, pelo efeito propagador que exerce sobre a atividade econômica, nas fases de retração, este efeito às avessas tem um elevado custo ao sistema.
O papel do capital comercial na contribuição do agravamento das contradições tem sido um pouco menor, em face dos avanços da tecnologia da informação permitir que indústria e comércio trabalhem de forma extremamente eficiente. As modernas técnicas de gestão de estoques, associadas aos avanços tecnológicos, permitem a manutenção de estoques em níveis muito inferiores ao já experimentados pelo sistema, por exemplo, à época da Grande Depressão de 1929. Contudo, a crise atual tem se mostrado tão devastadora, que nem mesmo esta melhora significativa na gestão dos estoques tem evitado seu acúmulo. Várias são as notícias de quedas acentuadas nas vendas do comércio varejista, das liquidações etc. a fim de desafogar os estoques antigos, para permitir à continuidade do ciclo, isto é, as encomendas à indústria.
Deste modo a modificação na contradição realização x circulação, provocada pelo capital mercantil, em detrimento da dissociação dos atos realização x circulação, no tempo e no espaço, também fica patente quando da análise da atual crise. Nem mesmo a produção atrelada à encomenda tem evitado o problema, em virtude de em alguns contratos as quantidades encomendadas sofrerem cancelamento após o fechamento do pedido.
Pelo fato do movimento de globalização ter dado ao processo de reprodução capitalista um caráter mundial, de forma que todas as economias capitalistas estão interligadas, pelo processo de acumulação capitalista em suas 3 formas (mercadoria, dinheiro e produtiva) em suas 2 esferas (produção e circulação), a crise também assume um caráter mundial.
Quando os empresários em cada país agem conforme detalhado anteriormente, empresários de toda parte do mundo sentem o impacto. As sensíveis quedas registradas nas exportações e importações da maioria das economias capitalistas, demonstram como o processo de globalização da acumulação capitalista, teria que inevitavelmente resultar numa crise também em escala planetária.
Embora o Capitalismo em sua fase atual possua características que já diferem, em alguns elementos, daquelas encontradas por Marx, em função do ininterrupto desenvolvimento das forças produtivas neste modo de produção ser bastante dinâmico, é impressionante como numa citação de Marx descrevendo a crise de superprodução é possível encontrar tanta semelhança com a atual crise:

A destruição principal, e de caráter mais agudo, atingiria os valores-capital, o capital na medida em que configura a propriedade valor. A parte do valor-capital na forma apenas de direitos a participações futuras na mais-valia, no lucro, na realidade meros títulos de crédito sobre a produção em diversas modalidades, logo se deprecia com a queda das receitas que servem de base para determiná-la. Parte do ouro e da prata em espécie fica ociosa, não funcionando como capital. Parte das mercadorias que estão no mercado só pode efetuar o processo de circulação e de reprodução com enorme contração de preços, portanto por meio de depreciação do capital que ela representa. Do mesmo modo depreciam-se mais ou menos os elementos do capital fixo. Acresce que relações de preços determinadas, de antemão estabelecidas, condicionam o processo de reprodução, e por isso a queda geral de preços estagna-o e desorganiza-o. Essa perturbação e essa estagnação paralisam a função de meio de pagamento, exercida pelo dinheiro, ligada ao desenvolvimento do capital e baseada sobre aquelas relações de preços pressupostas; interrompem em inúmeros pontos a cadeia das obrigações de pagamento em prazos determinados, e se agravam com o conseqüente desmoronamento do sistema de crédito que se desenvolve junto com o capital. Assim redundam em crises violentas, agudas, em depreciações bruscas, brutais, em estagnação e perturbações físicas do processo de reprodução e, por conseguinte, em decréscimo real da reprodução (Marx, 1894, L-III, V-IV, p. 292).

Comparando a citação anterior com a crise atual, se percebe como a crise de surperprodução capitalista possui características bem definidas. Veja que a deflagração tende a ser na esfera financeira e, ao impactar o valor das companhias nas bolsas de valores, se propaga rapidamente à esfera real. Outra característica interessante diz respeito ao colapso experimentado pela função de meio de pagamento do dinheiro e sua propagação por toda a cadeia produtiva e, o desmoronamento que ocasiona no sistema de crédito.

Conclusão


O presente artigo, por meio do trabalho de sistematização elaborado por Ribeiro (2008), a partir da obra de Marx, detalhou acerca das formas de manifestação da crise de superprodução, a saber: as funções do dinheiro como meio de circulação e meio de pagamento, que antecedem o próprio modo de produção capitalista; a contradição entre produção x circulação e a contradição entre produção x consumo. Além disso, deve-se adicionar o surgimento dos capitais mercantil e bancário, superdimensionando as contradições anteriormente mencionadas.
Se de um lado as formas de manifestação em que a crise se apresenta são várias, de outro lado, o seu conteúdo é sempre o mesmo: uma imensa quantidade de mercadorias, um grande número de consumidores (considerando o consumo produtivo ou pessoal), porém barreiras econômicas que impedem o consumo (seja produtivo, seja pessoal). Uma breve análise da situação atual do capitalismo mundial demonstrou de forma clara o quadro anteriormente relatado.
Tomando as formas de manifestação teóricas, elucidadas por Marx, o presente artigo detectou a presença de praticamente todas estas na crise atual. E, mais que isto, a citação de O Capital onde Marx descreve a crise de superprodução, deixou bem claro como a mesma tende a ser deflagrada na esfera financeira, por conta das características peculiares que possui a mercadoria-capital. A fúria do capital em valorizar-se e, a facilidade e rapidez com que a mercadoria-capital possibilita à valorização, gera na esfera da circulação, mais precisamente no ambiente onde o dinheiro possui movimento autônomo, um ponto de maior sensibilidade ao sistema.
Mas, embora haja esta tendência e a repetição do fenômeno tenha o mesmo desenvolvimento, normalmente, atinge em seu princípio um ramo ou setor determinado o que facilita, à imprensa, aos políticos e aos acadêmicos ortodoxos, tratá-lo sempre de forma inédita, como culpa da incompetência humana. Ocorre também, que normalmente muito próximo do colapso os indicadores econômicos e a atividade produtiva estão em expansão, de modo que a violência em que a crise chega, revertendo bruscamente as tendências, facilita tratar-lhe da forma anteriormente dita.
Sem dúvida, a preocupação em lidar com a crise de abundância como se fosse um acidente, um equívoco, esbarra mais uma vez, na questão ideológica. Se todos os indivíduos, ou pelo menos, parte significativa, soubessem que a crise de superprodução longe de ser um erro cometido por alguém ou governo, consiste numa lei do modo capitalista de produção, fruto da sua maior contradição: o caráter social da produção e a forma de apropriação privada capitalista; certamente teriam expectativas e comportamentos que não contribuiriam de forma adequada ao processo de reprodução e ampliação do capital.
Contudo, o estudo de Marx acerca da questão foi tão preciso, que apesar do desenvolvimento das forças produtivas sob o Capitalismo ter sofrido muitas modificações ao longo do último século e início deste, é capaz não apenas de concluir que a atual crise consiste numa típica crise de superprodução (de capital) capitalista, mas além disto caracterizá-la dentro da citação de Marx, feita em um contexto histórico muito distante do presente.

Referências


MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro I – O processo de acumulação do capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1890. Tradução de Reginaldo Sant´Anna.

MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro II – O processo de circulação  do capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1893. Tradução de Reginaldo Sant´Anna.

MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro III – O processo global da produção do capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. Tradução de Reginaldo Sant´Anna.

MARX, Karl. Teorias da mais-valia – história crítica do pensamento econômico. Livro IV de O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. Tradução de Reginaldo Sant´Anna.

RIBEIRO, Nelson Rosas. A crise econômica: uma visão marxista. João Pessoa: Editora Universitária, 2008.

RIBEIRO, Nelson Rosas. A circulação e a reprodução do capital. Lisboa: Instituto Superior de Economia: AEISEG, 1979.



[1] No âmbito de um Grupo de Pesquisa em Análise de Conjuntura, a partir da teoria marxiana.
[2] Tendo em vista que quase todos os indivíduos no sistema são consumidores em potencial, efetuando ou o consumo produtivo, ou o consumo pessoal com o objetivo de realização de necessidades biológicas, espirituais, ou do capital etc.
[3] É importante ressaltar que embora se saiba que do movimento M-M até o M-D-M existe um longo processo histórico de evolução das forças produtivas, onde uma série de mercadorias assumiram a função de equivalente geral, até se chegar aos metais preciosos, considerados enfim como dinheiro. Porém, o presente estudo não ressaltou este aspecto dado o fato de ser desnecessário à sua consecução.
[4] A passagem da forma M-D-M à forma D-M-D´envolve um longo processo histórico das forças produtivas e das relações de produção bem como uma modificação substancial em seu conteúdo, passando M e D apenas a assumirem as formas de existência do próprio valor. Contudo, para não fugir do seu objetivo o presente estudo não se deterá à análise do processo de transformação da produção de mercadorias à produção capitalista de mercadorias.
[5] É relevante destacar que o capital bancário já existia antes do Capitalismo e relacionava-se às funções do dinheiro. No Capitalismo além das funções típicas já assumidas, o capital bancário assume uma série de novas atribuições ligadas ao aparecimento da mercadoria-capital.

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