sábado, 31 de março de 2012

BRICS, modo de usar

O BRICS não existe, embora faça, na semana que vem, sua quarta reunião de cúpula. Contradição em termos? Jogo de palavras? Brincadeira? Nada disso. Existem, sim, Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (que fornece o "S", como South Africa ou Sudáfrica).
 
Mas não existe um grupo que coordene suas ações, tenha prioridades comuns e atue em conjunto, qualquer que seja o tema que suba ao topo da agenda global.
 
Essa dificuldade de coordenação é admitida até por Jim O'Neill, o economista-chefe da firma financeira Goldman Sachs que inventou a sigla, já faz 11 anos.

"Esses quatro países compartilham muito pouco: dois são democracias, dois não; dois são produtores de commodities, dois não; Brasil e Rússia têm nível semelhante de riqueza, a Índia está muito atrás", disse ele, em entrevista recente ao jornal "Folha de S. Paulo".
 
Completou: "O resultado é que têm prioridades muito diferentes".
 
É bom esclarecer que o homem da Goldman Sachs fala em quatro, em vez de cinco países, porque não concorda com a inclusão da África do Sul, incorporada apenas no ano passado.
 
"Eles não conseguiram nem concordar em relação a um nome para liderar o FMI, quando Dominique Strauss-Kahn saiu", ironiza O'Neill.
 
Aliás, até para o Banco Mundial, instituição destinada a financiar exatamente os países em desenvolvimento, dos quais os BRICS se julgam os campeões, não há ainda um candidato BRICS para substituir Robert Zoellick, que acaba de renunciar.
 
Os BRICS cobram, desde sua primeira reunião de cúpula (20099), o fim do sistema dominante nas grandes instituções financeiras globais (Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial), pelo qual a Europa indica o chefe do Fundo e, os Estados Unidos, o presidente do Banco Mundial.
 
Mas aceitaram que uma europeia (Christine Lagarde, então ministra de Economia da França) assumisse o lugar de seu compatriota Strauss-Khan, dinamitado por um escândalo sexual. Não apoiaram o único candidato do mundo emergente que se lançou à disputa, o mexicano Agustín Carstens, presidente do Banco Central.
 
Agora, para o Banco Mundial, há dois candidatos dos emergentes postos à mesa, mas não são dos BRICS nem por eles foram lançados. Um é o colombiano José Antonio Ocampo, ex-ministro de Finanças, e, a outra, é a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, ministra de Finanças, sugerida pela África e que tem o apoio, por enquanto, de apenas um dos BRICS (África do Sul, obviamente).

O intrigante nessa omissão é que ela se dá no que é o coração do projeto BRICS, assim descrito por Nitin Desai, ex-subsecretário-geral das Nações Unidas:
 
"O projeto BRICS é, pura e simplesmente, desafiar a posição privilegiada da comunidade do Atlântico Norte e de seu aliado oriental, o Japão, no gerenciamento da interdependência global".
 
Desai lista, um por um, os outros campos em que os BRICS não têm nem terão, pelo menos a curto prazo, interesses comuns, a saber:
 
1 - "Não pode ser no campo do comércio, na medida em que os interesses próprios são diferentes. Brasil e Rússia são grandes exportadores de commodities, China e Índia, grandes importadores".
 
2 - "Todos os BRICS mantêm grandes reservas de moeda estrangeira e receberam substanciais fluxos de investimento externo. Mas eles também acreditam fortemente em manter a autonomia nacional no regime político sobre investimento estrangeiro".


3 - "As negociações globais sobre mudança climática são uma nova área para agrupamentos de países. Mas, aqui, os BRICS não estão sempre na mesma página". Desai explica que a Rússia aceitou obrigações para reduzir a emissão de gases do efeito estufa, embora obrigações diluídas, ao passo que os outros quatro BRICS "estão sob pressão, como economias de rápido crescimento, para aceitar obrigações, mas têm interesses divergentes em temas como florestas e energia nuclear".

4 - "Rússia e China são potências nucleares estabelecidas com substancial capacidade militar e membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas", o coração do sistema ONU.
Já os outros três reclamam um lugar permanente no CS, reivindicação não encampada pela China.
 
Reforça Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo: "Enquanto Brasil, Índia e África do Sul se empenham por uma significativa redistribuição de poder institucionall, China e Rússia são potências do status-quo, relutantes em mudar um sistema que lhes serviu bem nas décadas passadas".
Mesmo quando não está em jogo a governança global, os BRICS têm dificuldades em se entender.

O noticiário procedente da Índia, a anfitrião da quarta cúpula, diz que nela será criado um Banco de Desenvolvimento dos BRICS, que rivalizaria com o Banco Mundial no financiamento de projetos de cada um dos países-membros.
 
Não é bem assim, avisa a embaixadora Maria Edileuza Fontenele, subsecretária de Política da chancelaria brasileira. O que será criado é apenas um grupo de trabalho para estudar a possibilidade de criar o banco dos BRICS, tarefa que "tomará tempo", completa a diplomata.
 
Antes mesmo de chegar a concretizar o banco, já surgiram divergências: a Índia propõe uma presidência rotativa, a China quer que o comando seja seu, como a maior economia do bloco-que-não-é-bloco. O Brasil teme que a nova instituição sirva apenas como instrumento de política econômica para os chineses, o que não lhe convém.
 
Além disso, aponta a diferença de tamanho entre os bancos públicos de desenvolvimento dos cinco BRICS para ressaltar a dificuldade em torno do tema.
 
Tudo somado, tem-se que os BRICS são tremendamente importantes: em 2011, representavam 25% da economia global (de acordo com a Paridade do Poder de Compra das moedas nacionais), 30% da área terrestre do planeta, 45% da população mundial e, nos dez anos mais recentes, cresceram 4,2 vezes, enquanto o mundo rico crescia apenas 61%.
 
Mas, de novo, se está falando de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, não de um grupo. Os números seriam os mesmos se O'Neill, espertamente, não tivesse inventado a sigla para atrair investidores para novos focos.

Os governos gostaram da invenção, porque precisam de investidores, e a oficializaram, o que só prova a tremenda força do sistema financeiro no mundo contemporâneo: um mago de Wall Street inventa algo que acaba incorporado até pelos governos que querem desafiar a hegemonia do capitalismo que tem Wall Street como sua vitrina mais exuberante.

Mais sobre BRICS no sítio da Universidade Toronto: http://www.brics.utoronto.ca/

por Clovis Rossi - blog Algo mais que samba.

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