sábado, 30 de abril de 2016

"... é possível fazer ajuste fiscal e ampliar os programas sociais"

Não é um exagero afirmar que o economista Ricardo Paes de Barros conhece a miséria como poucos. Eles sabe onde os extremamente pobres estão, quanto eles ganham, se estudam ou não e quais são os benefícios sociais que chegam até eles. PB, como é conhecido, participou ativamente de diversos momentos históricos que culminaram com a superação da miséria. 

Com sua visão matemática, ajudou a transformar as ideias dos maiores estudiosos em programas sociais, como o ex-presidente do Banco Central Carlos Langoni, em benefício efetivo e de ampla abrangência gastando apenas 0,5% do PIB. 

PB participou do desenvolvimento do Bolsa Escola, do Cartão Alimentação e do Bolsa Família, e entre 2011 e 2015 integrou o governo Dilma, na Secretaria de Assuntos Estratégicos. Economista-­chefe do Instituto Ayrton Senna e professor do Insper, PB é engenheiro do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), tem mestrado em estatística, doutorado e pós-doutorado em economia pela Universidade de Chicago – templo do pensamento liberal – e pela Universidade Yale, ambas nos Estados Unidos. 

Na conversa a seguir, exibe um mapa dos méritos e problemas dos programas sociais atuais. E enfatiza: “Fazer ajustes fiscais e ampliar programas sociais não são ações incompatíveis”. 

ÉPOCA – O que deveria ser prioridade na área da educação num próximo governo?
Ricardo Paes de Barros – O ponto central é entender que o Brasil sabe fazer educação. Nossos resultados médios são ruins, mas há muitos municípios com resultados bárbaros. O que espanta é pensar por que não replicamos as experiências que funcionam. Precisamos aprender a fazer cópias inteligentes dessas estratégias. A cópia inteligente é entender o que funciona e adaptar à realidade daquele local, para aquelas demandas. Para isso, são necessárias três coisas. A primeira é aprender a documentar as boas práticas. É inadmissível que isso não seja feito. O que seria da ciência se não houvesse a devida documentação do que funcionou ou não e por quê? A segunda providência é ter um órgão central que evidencie as boas práticas. É um absurdo não termos na página do MEC, acessível a todos, as boas práticas educacionais do país reunidas. O terceiro ponto é dar incentivos e sanções para que o gestor aplique esses exemplos. Outro ponto importante em educação é a disseminação de uma agenda positiva. Em determinado momento tivemos de começar a bater na tecla de como a nossa educação vai mal, de quanto nossos professores estão mal preparados. Fizemos isso tanto que nossos educadores parecem estar nocauteados. Precisamos reformular o plano de carreira e mostrar para os professores que aqueles que se saírem bem serão reconhecidos. Tem de haver um sistema de meritocracia que premie o professor cujo aluno saiu de um ponto e progrediu, mesmo que ele não tenha alcançado as notas mais altas. Isso é importante para não ser injusto com aqueles professores que trabalham com os alunos mais difíceis, cujo progresso não aparece em notas, mas ocorre.
ÉPOCA – O que o senhor acha da proposta de acabar com a obrigatoriedade de um percentual mínimo de verbas do Orçamento destinados à saúde e à educação?
Paes de Barros – Uma coisa que se aprende em economia é que criar restrição é sempre pior. Em princípio, a flexibilidade é melhor. Carimbar o dinheiro é uma ignorância. Uma coisa é definir um valor a ser investido num plano de educação que dure cinco ou dez anos, o que não faz sentido é definir um valor obrigatório para sempre.
ÉPOCA – Qual é sua opinião sobre o programa de financiamento estudantil Fies, que explodiu em gastos e entrou em colapso?
Paes de Barros  – Não existe no mundo, que eu conheça, educação superior com participação do setor privado sem crédito educativo. O problema do Fies é o modelo. Tem de ajustar o desenho para conceder a bolsa para quem mais precisa, que é aquele que não consegue poupar para estudar. A bolsa não é para quem tem de dar uma poupadinha a mais para poder pagar a faculdade. Temos de deixar esse aluno apertar e poupar mais, para a economia brasileira poupar mais. Quando o governo dá a bolsa a quem poderia pagar sua própria faculdade, ele desestimula a poupança. É preciso saber para quem vai o crédito. O subsídio tem de ser variável dependendo de quão vulnerável a pessoa é. Quem será professor recebe um subsídio. Quem será economista, outro. Dar crédito é uma ciência. Não se pode dar crédito de forma automática com regras não inteligentes e que não são verificáveis. Crédito educativo é sempre uma questão delicada, que precisa ser tratada de forma delicada, com uma lupa, monitoramento constante e mudanças frequentes para manter um ajuste fino. De outra forma, está se destruindo um projeto que teria de existir.
ÉPOCA – Foi esse o problema do Fies?
Paes de Barros  – Esse é um problema que temos com várias políticas sociais brasileiras, como o seguro-desemprego. Deixamos os ajustes do seguro-desemprego para os 45 minutos do segundo tempo, indo para a prorrogação, e aí acabaram sendo feitos de forma atabalhoada, grosseira. O seguro-­desemprego deve ser feito na fase em que a economia está crescendo. Na fase em que se está em recessão, temos de ser mais benevolentes. A política pública tem de ser carinhosamente, cuidadosamente ajustada. A gente adotou uma política pública arrojada, mas, em certa medida, displicente com os detalhes. Existe essa crença de que as coisas são robustas e o que é importante é botar dinheiro nelas e os ajustes finos são de pouca relevância.
ÉPOCA – A que o senhor atribui isso? O problema é o peso da máquina do Estado ou de quem está no poder?
Paes de Barros  – É algo que parte lá de cima. O Fernando Henrique Cardoso era muito cuidadoso. Cada uma das políticas sociais era olhada com lupa num nível muito detalhado, a ponto de produzir uma certa inércia. Não é à toa que o Bolsa Escola aconteceu no final do governo FHC e numa escala muito mais controlada. O Fernando Henrique não queria apenas saber o que estava sendo feito, ele queria entender qual era a concepção teórica abstrata, como aquilo se unia ao plano de governo dele. Com o Lula não tinha nada disso. Ele dizia “isso aqui parece bom, isso aqui parece bom, isso aqui parece bom. Então vamos fazer os três”. No dia seguinte, ele já perguntava “e aí, já fez? Falei com você ontem e não está implantando ainda?”. Abrir universidade pública era algo que tinha de ser feito com um cuidado. Por que abrir uma universidade pública? Tinha de pensar 50 vezes e esmiuçar os argumentos e o plano. No governo Lula abrimos mais universidades públicas do que nos últimos 50 ou 100 anos. Havia arrojo. Mas, para fazer algo assim, tem de ter uma equipe do outro lado com lupa para analisar e controlar de onde tirar, em que momento tirar. Isso não ocorreu. Foi  arrojo e pronto. A mesma lógica do governo Lula vale para a presidente Dilma. Ela é muito arrojada. Lançou o Pronatec daquele tamanho enorme sem a busca de um ajuste fino. É a crença de que a coisa é robusta e a política pública não precisa de delicadeza. Eu não concordo com essa visão.
Ricardo Paes de Barros: "Dar crédito é uma ciência, de ajuste fino. Não se pode dar crédito sem monitorar, como ocorreu com o Fies" (Foto: Antônio Gaudério/Folhapress)
ÉPOCA – Essa preocupação dos governos do PT com os grandes números e sua pouca atenção aos ajustes finos se devem a uma questão de ideologia ou de marketing?
Paes de Barros  – Isso vem da muita preocupação com a execução rápida. Acho que temos um governo voltado para resultado e não para a eficiência e a eficácia. Um governo pouco voltado para valores ou princípios. Lá atrás, quando se tinha orçamento, equilíbrio nas contas e um gigantesco problema de desigualdade e pobreza, fazer algo muito arrojado e mais solto poderia não ser um problema tão grande. Agora, na hora que se tem uma pobreza de menos de 5% e os gastos públicos consomem 40% de PIB, crescendo meio ponto percentual por ano, continuar agindo dessa forma é trabalhar na área da irresponsabilidade fiscal. Hoje, o Brasil tem uma política social tão gigantesca que, se você botar um relojoeiro trabalhando com cada uma delas, ele vai lá, aperta, ajusta e sobrará dinheiro para tudo que é lado. Criou-se uma coisa tão grandiosa que é totalmente óbvio que com menos se consegue fazer mais. 

ÉPOCA – Isso pode ser feito também com o Bolsa Família?
Paes de Barros  – O Brasil reduziu a extrema pobreza a um terço, e o número de beneficiários do Bolsa Família aumentou. Como é possível? O Bolsa Família diz com orgulho que atende mais de 13 milhões de famílias, ou seja, 45 milhões de pessoas, mais de 20% da população brasileira. Mas os extremamente pobres são 5%. Por que o Bolsa está atendendo tanta gente? Dizer que 25% da população brasileira deixou de ser pobre por causa do programa não é verdade. Tivemos uma enorme inclusão produtiva. A grande maioria saiu da pobreza porque passou a trabalhar. O Bolsa Família precisa de ajustes e focalização. É preciso estabelecer critérios, monitorar e avaliar constantemente.  O risco de os desincentivos atrapalharem a emancipação de alguns grupos é grande. O governo acha que pobre não faz conta, e que a política social não influencia a decisão de a pessoa trabalhar ou não trabalhar, ser formal ou não, empreender ou não.  Isso é ingênuo. O Bolsa Família passou a complementar a renda, mas o governo não planejou com cuidado como monitorar a distribuição desse benefício. Hoje, de acordo com quanto cada um declara como renda, há uma remuneração complementar. Temos no cadastro único uma quantidade enorme de informações para monitorar e checar a validade das informações. Então, por que usamos só o dado declarado para dar o benefício? Hoje está ocorrendo a transferência de renda para famílias que não são ricas. Agora, essa renda está chegando aos que mais precisam e no momento que eles mais precisam? Não. E isso é muito sério
ÉPOCA – A situação das contas públicas é deplorável. É possível fazer ajustes e manter os programas sociais sem alterar sua  amplitude?
Paes de Barros – Dá para ajustar e alcançar uma amplitude ainda maior. E precisamos ampliar porque ainda temos um buraco social gigantesco. Temos um Gini (índice de desigualdade social) que ainda está na casa dos 50 e poucos pontos. Temos de chegar a 40 para ter um país razoável. O pobre não tem nada a ver com a insolvência do Estado brasileiro. A metade mais pobre da população tem menos de 15% da renda das famílias. E a renda das famílias é metade do PIB. A metade mais pobre do Brasil tem menos de 10% do PIB. O Bolsa Família equivale a meio por cento, no máximo 1%. Não é a política social que faz pressão no Orçamento brasileiro. A pressão vem das outras mil coisas que o Brasil faz. Não há como afirmar que para qualquer ajuste fiscal o Brasil precisa tirar das políticas sociais. Na hora da crise, a metade dos primos ricos que têm 90% do PIB pode tranquilamente segurar a onda da metade dos primos pobres, que só têm 10% do PIB, sem mexer no pouco que eles têm. É perfeitamente possível e tranquilo proteger os pobres. Isso implica não gastar com os que não são os pobres.
Ricardo Paes de Barros: "O Brasil reduziu a pobreza extrema a um terço e os beneficiários do Bolsa Família aumentaram. Por quê?" (Foto: Antônio Gaudério/Folhapress)
ÉPOCA – Se um governo Michel Temer tiver essa visão e colocar os relojoeiros para ajustar as políticas sociais, isso já seria o suficiente para equacionar os gastos?
Paes de Barros – Para equacionar é preciso ter alguém disposto a enxergar que temos um problemão, que é a Previdência. Quem recebe Previdência no Brasil não é quem pertence à metade mais pobre. Quem não tiver política muito ousada para controlar a Previdência terá um problema. Outra lógica maluca que deve mudar é que eu cobro de você um imposto e te dou um benefício. Daí, esse dinheiro passa pelo governo e vira gasto público. Em vez de o governo cobrar um imposto para dar um benefício previdenciário, por que ele não faz o mesmo que faz com o FGTS? Coloca a contribuição numa conta que é do cidadão. Isso deixa de ser gasto do governo e também não será receita do governo. Será a pensão do cidadão no futuro. Na indústria, o governo cobra imposto dos empresários para subsidiar os próprios empresários, via BNDES ou via outro mecanismo. Como países com um gasto de proporção do PIB menor que o Brasil conseguem ter serviços melhores que o Brasil? Porque boa parte do gasto brasileiro é o governo devolvendo dinheiro para o mesmo cara que pagou para ele. Por que cobrar imposto do profissional e deixar o filho dele estudar na USP de graça? Por que não parar de cobrar aquele imposto e propor que a família faça uma poupança para que ela pague os estudos na USP?
ÉPOCA –O senhor é a favor de que famílias mais ricas paguem as universidades públicas?
Paes de Barros – Claro! Nos Estados Unidos, em que o sistema universitário é o melhor do mundo, na Colômbia, no Chile, funciona assim. Por que num país tão desigual quanto o Brasil, os 10% que têm metade da renda brasileira têm universidade gratuita? Nenhum filho dessas famílias deixaria de estudar na USP porque a USP é paga. A fórmula simples é a seguinte: cobrar da família o que ela pagava no ensino médio, de acordo com o valor declarado no Imposto de Renda.
ÉPOCA – Qual é sua opinião sobre a política de valorização de salário mínimo defendida pela PT?
Paes de Barros – É muito importante aumentar a renda das famílias mais pobres, mas isso é possível via salário-família e abono salarial, sem mexer com o salário mínimo. Ao aumentar o salário mínimo se faz uma confusão tão grande nas contas que não se sabe quem perde e quem ganha, e isso afeta diretamente a Previdência. Quando aumenta o salário mínimo, o governo faz o patrão do trabalhador com baixa remuneração pagar a conta. Quando ele aumenta o abono ou o salário-família, ele distribui a conta para todos os empregadores, com um impacto muito menor em todos os aspectos. Por que estamos usando o salário mínimo loucamente? Porque essa é uma política de resultado instantâneo e, de novo, os efeitos colaterais são ignorados. Para mim, o salário mínimo deveria ser congelado.
ÉPOCA

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