segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

HISTÓRIA VIVA: "Queto de Anacleto de Silecina"

Por François Silvestre
Passado nos anos, está quase cego. Mas vê distante. Principalmente com os olhos da memória, que não se embaçam nem se perdem nas águas inexistentes da catarata.
Seu nome repete o nome do pai. O que se fez resumir pelo som mais próximo. Anacleto virou Queto, pela dificuldade que tinha sua avó na pronúncia do “éle” depois da consoante. O que seria Cleto é Queto.
E assim ficou: Queto de Anacleto de Silecina. Carregava, portando, no próprio nome, os nomes agregados do pai e da avó.
Mora numa casa quase perdida entre o riacho dos Dormentes e a serra do Bonsucesso. De alvenaria, apenas o quarto de dormir e a cozinha. Corredor e sala, de taipa; latada coberta com palmas de carnaúba.
Fui visitá-lo num Domingo de tarde modorrenta, a esperar as chuvas prometidas pelos meteorologistas. O caminho quase desapareceu. O carro foi deixado na subida da ladeira de Portalegre, no antigo sítio de Rodolfo Mafaldo.
Queto estava quieto, sentado num tôco de quixabeira sob a sombra de sua latada. Usa óculos borrados, mais por hábito do que por serventia.
“Chegue-se mais perto, de longe só vejo pelos ouvidos”. Ao me apresentar, ele levantou-se. “Ora, ora. És vosmicê mermo”? Queto só fala “errado” quando quer. Teve instrução média e leitura boa, por conta de sua convivência com Padre Mário, velho pároco de Portalegre. Anos Cinquenta e Sessenta.
Naquela Matriz Queto era um faz tudo. De manutenção a ajudante de missas. Que ele ainda recita em latim.
Passou a mão no meu rosto e explicou: “Quero ver se ainda usa barba”. Depois, sentou e mandou que eu fizesse o mesmo.
Apoiava-se na bengala alisada pelo tempo, uma vergôntea de mofumbo. Conversamos sobre as “novidades”, que ele ignora. “Nem sei quem é o prefeito, Vosmicê sabe”?
Perguntei sobre a saúde. Ele riu: “A minha ou a do povo”? Quis saber dele. A do povo, ora, que saúde? Ele começou pela idade. “Preste tento. Véi num tem saúde, tem mantença. Ajeita daqui, remenda dali, pra continuar a ilusão da vida”.
Descobri que ele não vai à farmácia. Mantém o mesmo hábito do seu avô materno, que foi “médico” popular. Para problemas de respiração, chá de raiz da ipepaconha. Fortalece os ossos com mastruz no leite. Leite da cria de suas cabras. Quando a urina escasseia, toma infusão de velame com raiz de quebra-pedra.
Na agitação, chá de capim-santo; calmante, que ajuda a dormir. Afina o sangue com a batata de purgar. E chá de canela para controle da pressão. Quando o esôfago se irrita, ao tomar umas biritas, tira a ressaca com chá de fedegoso. Escova os dentes com raspa de juá. Na febre, infusão de eucalipto. Ao ferir-se, tintura de jucá.
Pergunto sobre o tempo. Ele tira os óculos, como se servissem para alguma coisa, e responde: “Meu filho, parece que até as plantas e os bichos se esqueceram do que sabiam”.
Té mais.
François Silvestre é escritor
* Texto originalmente publicado no Novo Jornal.

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