Este talento nasceu em Coimbra, na aula de direito natural, na manhã em que Pacheco affirmou «que o século XIX era um século de progresso e de luz».
O curso começou logo a pressentir, e a affirmar nos cafés da Feira, que havia muito talento em Pacheco: e esta admiração cada dia crescente do curso, communicando-se, como todos os movimentos religiosos, das multidões impressionaveis ás classes raciocinadoras, dos rapazes aos lentes, levou facilmente Pacheco a um premio no fim do anno. A fama desse talento alastrou então por toda a academia — que, vendo Pacheco sempre silencioso, já d’óculos, grave nos seus passos, com tomos gordos debaixo do braço, sentia alli um grande espirito que se concentra e se retesa todo em força íntima. Esta geração académica, ao dispersar, levou pelo paiz, até os mais sertanejos burgos, a notícia do immenso talento de Pacheco. E já em escuras boticas de Traz-os-Montes, em lojas palreiras de barbeiros do Algarve, se dizia, com respeito, com esperança: — «Parece que há agora ahi um rapaz de immenso talento que se formou, o Pacheco!»
Pacheco estava maduro para a representação nacional. -Veio ao seu seio trazido por um governo (não recordo qual) que conseguira com dispendiosas manhas apoderar-se do precioso talento de Pacheco. Logo na primeira noite em que elle, em Lisboa, foi ao Martinho tomar chá, se sussurrou pelas mezas, com curiosidade: — «É o Pacheco, rapaz de immenso talento!» E desde que as camaras se constituiram, todos os olhares, os do governo e os da opposição, se começaram a voltar com frequência, quasi com anciedade, para Pacheco, que, na ponta duma bancada, conservava a sua attitude de pensador concentrado, os braços cruzados sobre o collete, a fronte um pouco vergada para o lado como sob o peso das riquezas interiores e os óculos a faiscar…
Finalmente uma tarde, na discussão da resposta ao discurso da Corôa, Pacheco teve um movimento como para interromper um padre zarolho que fallava «da liberdade». O sacerdote immediatamente estacou com deferencia; os tachygraphos apuraram vorazmente a orelha: e toda a câmara cessou o seu desafogado susurro, para que, n’um silencio condignamente magestoso, se podesse pela vez primeira produzir o immenso talento de Pacheco. No entanto Pacheco não prodigalisou desde logo todos os seus thesouros. De pé, com o dedo espetado (geito que foi sempre muito seu), Pacheco afrmou num tom que trahia a segurança do pensar e do saber intimo: — «que ao lado da liberdade devia sempre coexistir a auctoridade!»
Era pouco, decerto: —mas a câmara percebeu bem que, sob aquelle curto resumo, havia um mundo, todo um formidável mundo, de idéas sólidas. Não volveu a fallar durante mezes — mas o seu talento inspirava tanto mais respeito quanto mais invisivel e inaccessivel se conservava lá dentro muito fundo, nas reconditas rogiões do seu sêr. O único recurso que restou então aos devotos d’esse immenso talento (que já os tinha, incontaveis) foi contemplar a testa de Pacheco — como se olha para o céo pela certeza que Deus está por traz. A testa de Pacheco offerecia uma superfície escanteada e larga. E muitas vezes, junto d’elle, conselheiros e directores geraes balbuciavam com respeito: — «Nem é necessário mais! Basta vêr aquella testa!»
Pacheco pertenceu logo ás principaes commissões parlamentares. Nunca porém accedeu a relatar um projecto, desdenhoso das especialidades. Apenas ás vezes, em silêncio, tomava uma nota. E quando emergia da sua concentração, espetando o dedo, era para lançar alguma idéa geral sobre a Ordem o Progresso, o Fomento, a Economia. Havia n’este refolho a evidente attitude d’um immenso talento que (como diziam os seus amigos, piscando o olho com finura) «está á espera, lá em cima, a pairar».
Este immenso talento não podia deixar de entrar nos conselhos da Corôa. Pacheco, n’uma recomposição ministerial (provocada por uma roubalheira) foi ministro: e immediatamente se percebeu que macissa consolidação viera subitamente dar ao governo o immenso talento de Pacheco. Na sua pasta (que era a da marinha) Pacheco não fez durante os longos mezes de gerência «absolutamente nada», como insinuaram tres ou quatro espíritos amargos e estreitamente positivos. Mas pela primeira vez, dentro deste regimen, a nação deixou de ter inquietações e duvidas sobre o nosso Imperio Colonial. Porquê? Porque sentia que pela primeira vez os interesses d’esse Imperio estavam confiados a um verdadeiro talento, ao immenso talento de Pacheco.
Nas cadeiras do poder, Pacheco rarissimamente sahia do seu silencio pensativo e fecundo. Ás vezes porém, quando a opposição se tornava clamorosa, Pacheco descerrava o braço, tomava com lentidão uma nota a lapiz: — e esta nota, traçada com lentidão e madurissimo pensar, bastava para perturbar, acuar a opposição. É que o imenso talento de Pacheco terminara por inspirar, nas camaras, nas commissões, nos centros, um terror salutar! Ai do mesquinho sobre quem viesse a desabar com colera aquelle talento immenso! Certa lhe seria a humilhação irresgatavel! Assim dolorosissimamente o experimentou o moço petulante, que um dia ousou accusar o snr. Ministro do Reino (Pacheco dirigia então o Reino) de descurar a instrucção do paiz! Nenhum ataque podia ser mais sensivel áquelle immenso espirito que, na sua phrase lapidaria e crystallina, ensinára que «um povo sem o curso dos lyceus é um povo incompleto».
Com o dedo espetado (geito sempre tão seu) Pacheco replicou ao moço temerario esta coisa tremenda: — «Ao illustre deputado que me accusa só tenho a dizer que enquanto, sobre questões d’Instrucção Publica, s. exc.ª ahi nessas bancadas faz berreiro, eu aqui n’esta cadeira faço luz!» — Eu estava lá, n’esse grande momento, na galeria. E não me recordo de ter jámais ouvido, numa assembléa humana, uma tão commovida e apaixonada rajada de acclamações! Creio que foi d’ahi a dias que Pacheco recebeu a grã-cruz da Ordem de S. Thiago.
O immenso talento de Pacheco pouco a pouco se tornava um credo nacional. Vendo que inabalavel apoio esse immenso talento dava ás instituições que servia, todas o appeteceram. Pacheco começou a ser um director universal de Companhias e de Bancos.
Na primeira vaga penetrou no Conselho de Estado. O seu partido reclamou unanimemente que Pacheco fosse seu chefe. Mas os outros partidos cada dia se soccorriam com submissa veneração do seu immenso talento. Em Pacheco pouco a pouco se concentrava a nação.
Á maneira que elle assim envelhecia, e crescia em influencia e dignidades, a admiração pelo seu immenso talento chegou a tomar no paiz certas fórmas d’expressão — só proprias da religião e do amor. Quando elle foi Presidente do Conselho, havia devotos que espalmavam a mão no peito, com uncção, e reviravam o branco do olho ao céo para murmurar piamente: — «Que talento!» E havia namorados que, cerrando os olhos enlanguecidos, e repenicando um beijo nas pontas juntas dos dedos, balbuciavam a desfallecer de voluptuosidade: — «Ai! Que talento!» E para que o esconder? Outros havia, a quem aquelle immenso talento, como um excessivo e desproporcional privilegio, amargamente irritava. A esses ouvi eu exclamar com furor, atirando patadas ao chão: — «Irra, que é ter talento de mais!»
Pacheco no entanto já não fallava. Sorria apenas. A testa cada vez se lhe tornava mais vasta. Não relembrarei a sua incomparavel carreira. Basta que o meu caro snr. Mollinet percorra os nossos annaes. Em todas as instituições, reformas, fundações, obras, encontrará o cunho de Pacheco. Portugal todo, moral e socialmente, está repleto de Pacheco. Foi tudo, teve tudo. Decerto o seu talento era immenso! Mas immenso se mostrou o reconhecimento da sua patria! Pacheco e Portugal, de resto, necessitavam insubstituivelmente um do outro, e formosamente se completavam. Sem Portugal — Pacheco não teria sido o que foi entre os homens: mas sem Pacheco — Portugal não seria o que é entre as nações! A sua velhice offereceu um caracter augusto. Perdera o cabello completamente. Todo elle era testa. E mais que nunca revelava o seu immenso talento — mesmo nas minimas coisas.
Muito bem me lembro da noite (sendo elle Presidente do Conselho) em que, na sala da Condessa de Arrôdes, alguém lhe perguntou reverentemente o que S. Exc.ª pensava de Canovas d’ el Castillo. Magistralmente, silenciosamente, sorrindo apenas, S. Exc.ª deu com a mão um ligeiro córte horisontal no ar. E foi em torno um murmurio d’admiração, lento e maravilhado. N’aquelle gesto quantas coisas subtis, profundamente pensadas! Eu por mim, depois de muito esgravatar, interpretei-o d’este modo: — «mediocre, meia-altura, o snr. Canovas!» Porque, note o meu cairo snr. Mollinet como aquelle talento, sendo tão vasto — era ao mesmo tempo tão fino!
Rebentou — quero dizer, S. Exc.ª morreu, quasi repentinamente, sem soffrimento, no começo d’este duro inverno. Ia ser justamente creado marquez de Pacheco. Toda a nação o chorou com infinita dôr. Jaz no alto de S. João, sob um mausoleu, onde por suggestão do snr. conselheiro Accacio (em carta ao Diariode Noticias) foi esculpida uma sublime figura de Portugal chorando o Genio.
Mezes depois da morte de Pacheco, encontrei a sua viuva, em Cintra, na casa do dr. Videira. É uma mulher (dizem amigos meus) de singular intelligencia e bondade. Cumprindo um dever de portuguez, lamentei, diante da illustre e affavel senhora, a perda irreparavel que era sua e da patria. Mas quando, commovido, alludi ao immenso talento de Pacheco, a viuva de Pacheco ergueu bruscamente, espantados, os olhos que conservara baixos — e um fugidio, estranho, frio e triste sorriso arregaçoulhe os cantos da bôca fina!… Eterno desaccordo dos destinos humanos! Aquella pobre senhora nunca comprehendera aquelle immenso talento!
Creia-me, meu caro Snr. Mollinet, seu dedicado
— FRADIQUE.
Eça de Queiroz In CARTAS DE FRADIQUE MENDES 689 (II),REVISTA DE PORTUGAL.
por Fabio Kanczuc
Que imenso talento, não é???????
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