Hoje eu vou começar contando um de meus hábitos, e não vou me surpreender se o leitor o achar estranho.
Anos atrás, quando o contraí, ele me parecia de fato muito estranho; cheguei a me perguntar se não seria um tique nervoso. Trata-se de uma mania que eu tenho de olhar para uma folhinha que mantenho dependurada na parede, bem atrás do computador. Consulto-a a cada duas horas, e até de hora em hora, dependendo do dia. O mais grave é que não a utilizo para me informar sobre os dias e semanas. O que eu preciso é me certificar se estamos mesmo neste ano e neste século.
Essa minha permanente dúvida quanto à passagem do tempo deve-se a certas coisas que sou obrigado a ler ou ouvir em razão de meu ofício. Coisas que me pareceriam normais se eu vivesse numa época distante, mas que me soam estapafúrdias, sabendo eu que estou no século 21 e no ano da graça de 2012.
Vou lhes dar um exemplo. Outro dia eu estava aqui sentado quando subitamente, no rádio, alguém começou a amaldiçoar certos adjetivos. Logo percebi que a referida pessoa tinha um ataque de urticária toda vez que pronunciava o adjetivo “individual”, e cheguei a me preocupar pela saúde dela quando a ouvi dizer “interesse individual”.
Minutos mais tarde eu ouvi algo semelhante a um forte estalo – foi quando a pessoa empregou os adjetivos “privada” e “particular” em conexão com “atividade” e “iniciativa”. E aí veio o pior: logo depois eu a ouvi dizer “empresa”, e não entendi mais nada. Tive a impressão de ouvir um rugido e em seguida uma ambulância.
Fiquei me perguntando que delírio era aquele que eu acabara de ouvir. Busquei socorro n’ O amor nos tempos do cólera, de Gabriel Garcia Marques, mas logo vi que não era o melhor caminho. As semelhanças eram pequenas.
Voltei-me então para a história das idéias. Ocorreu-me que poderia ser a malignidade dos interesses não-gerais, uma síndrome descoberta não me lembro bem quando. Seu sintoma característico é uma tendência a divinizar o “interesse geral” e a demonizar os “interesses particulares”. O caso inverso também existe, mas é menos comum e, de qualquer forma, deve ser estudado noutra enfermaria.
O que as duas síndromes têm em comum é o exagero: uma tendência a levar a exaltação das virtudes de “seu” lado a um extremo incompatível com o bom senso.
Em si, a contraposição do “interesse geral” corporificado no Estado ao “particularismo” dos interesses individuais, grupais ou empresariais nada tem de novo. Não é sequer uma idéia moderna.
O que lhe confere certa aura de “modernidade” (de uma sinistra modernidade, seja dito de passagem) é a tendência a ver toda individualidade ou particularidade como inerentemente maligna. O reverso é óbvio: o “interesse geral” – e portanto aquele líder ou partido que se arvora em seu portador – torna-se indiscutível; no limite ele encarna a única verdade e a única ética possíveis.
No pensamento moderno, coube a J.J. Rousseau emprestar dignidade filosófica a essa idéia básica; em sua filosofia política, com efeito, a “vontade geral” é a encarnação verdadeira do interesse público ou coletivo, diferente de uma simples soma de vontades “contaminadas” pelos interesses particulares de indivíduos, grupos ou setores.
Com dezenas de variações, essa idéia permeia a filosofia alemã do século 19, os movimentos anarquistas e praticamente todo o pensamento socialista, tendo o seu gume autoritário explicitado e aguçado pelo marxismo e pelo fascismo. Com sua inegável sinceridade, disse-o muito bem Lênin: se eu detenho o poder e estou seguro de estar fazendo o que precisa ser feito, por que haverei de tolerar as críticas de uma imprensa livre?
No Brasil, a visão monista e autoritária a que me refiro desembarcou em diversas épocas e sob variadas roupagens. Plasmado politicamente por Portugal e pela Igreja, o Brasil foi muito influenciado pelo absolutismo ibérico e pelo autoritarismo católico da Idade Média e da Contra-Reforma. Correram no mesmo leito as águas do positivismo de Augusto Comte, que se difundiu no meio militar já nas últimas décadas do século 19.
Nem as faculdades de Direito se mantiveram fora do alcance de tais idéias. A “teoria do Estado” por elas ensinada também se fazia muitas vezes ouvir com sotaque italiano ou alemão, seu fio condutor sendo igualmente a utopia de um Estado incondicionado, autônomo frente aos “particularismos” (econômicos, sociais etc) – e corporeamente representado por burocratas fantasiados de prussianos: competentes, profissionais, desprovidos de interesses e devotados tão-somente ao “interesse público”.
A maçaroca ideológica que acima esbocei foi de grande utilidade, needless to say, para a facção política centralizadora que assumiu o poder em 1930. Para estender a noção de “particularismo” às regiões e à federação, os áulicos e sub-ideólogos daquela época não precisaram mais que dez minutos; não por acaso, coube-lhes a tarefa de reforçar os argumentos anti-federativos, preparando nesse aspecto o terreno para o auto-golpe varguista de 1937.
Foi dessa forma que as diversas correntes de pendor autoritário – às quais se reuniria depois de 1945 o Partido Comunista – demonizaram o município como o habitat de latifundiários supostamente armados até os dentes, prontos para golpear a unidade nacional.
Não foi por um simples capricho acadêmico que empreendi este vol d’oiseau sobre a história das idéias e algumas de suas ramificações na história política brasileira. O que me moveu foi o desejo de pôr em relevo certas implicações mútuas entre um determinado discurso a que estamos acostumados no cotidiano e a divinização de um coletivo imaginário supostamente encarnado pelo Estado.
Resumidamente, eu tentei pintar o seguinte cenário.
Cá em baixo, aquela estranha figura de um indivíduo concreto que se imagina feito de uma matéria diferente da dos demais indivíduos; de uma pessoa que obviamente defende seus interesses particulares e os de seu grupo, mas quer-nos fazer crer que interesses só quem tem são os “outros”.
A meia altura – bingo!, a familiar verborréia anti-empresarial. O empresariado, como é óbvio, é onde tudo o que há de ruim se reúne e se condensa, pois além de “particular” (portanto anti-estatal), ele é também ganancioso e insensível às necessidades sociais; no limite, um conspirador. Mas sabemos todos que essa fantasia fascistóide não dificulta em nada o apelo a empresários de carne e osso quando o assunto é financiamento para campanhas eleitorais – ou para algum outro objetivo.
E lá em cima, finalmente, a densa nuvem do atraso ideológico e político brasileiro: a representação do Estado como um Leviatã benevolente, sempre atento a tudo e a todos, protetor da nação e carinhoso defensor dos pobres. Querem ouvir mais sobre isso?
É simples, basta escutar certa lenga-lenga diária. Façam como eu, trabalhem com a TV ou o rádio ligado.
Bolívar Lamounier
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