quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A lenda da queda da desigualdade


O debate, em El País.com, sobre os "pés de barro" do emergente Brasil provocou inúmeras menções à obscena desigualdade social, uma chaga aberta permanentemente no país.

O pior é que, nos últimos anos, houve uma insólita coincidência entre economistas liberais e os ex-esquerdistas do PT para decretar que a desigualdade estava diminuindo. Pura mistificação.

O que pode estar eventualmente diminuindo, mesmo assim muito pouco, é a desigualdade entre assalariados. A verdadeira obscenidade, que é diferença de renda entre capital e trabalho, não foi tocada. Provavelmente até piorou.

Comecemos pela coincidência: os primeiros a falar em redução da desigualdade foram economistas liberais, que se opunham às teses econômicas que o Partido dos Trabalhadores defendeu a vida toda, até chegar ao poder federal. Aí, o próprio líder máximo do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, admitiu que o que defendia antes não passava de "bravatas".

Tanto no governo Lula como no de sua afilhada e sucessora Dilma Rousseff foram adotadas políticas pró-mercado, para alívio e alegria dos economistas ortodoxos

Já os raros economistas que continuaram à esquerda, como Reinaldo Gonçalves, professor titular de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, não se alegraram nem um pouco. Escreveu Gonçalves:

"Com raras exceções, essas políticas limitam-se a alterar a distribuição da renda na classe trabalhadora (salários, aposentadorias e benefícios) sem alterações substantivas na distribuição funcional da renda, que inclui, além do salário e das transferências, as rendas do capital (lucro, juro e aluguel)".

Esse é o xis da questão. Todos os estudos que apontam para a queda da desigualdade referem-se apenas à salários. Também o índice de Gini, a mais conhecida medida da desigualdade, contabiliza apenas salários.

Mas os economistas liberais não enfatizam esse ponto em suas pesquisas - e os jornalistas compramos a versão abrangente de "queda na desigualdade", sem acrescentarmos "entre salários".
O fato é que não há elementos para fazer a comparação entre ganhos do capital e ganhos dos salários. As únicas indicações são as pesquisas em que o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) pergunta ao entrevistado quanto ele ganha. É só você mesmo fazer um teste: se lhe fizerem esse tipo de pergunta, você responderá automaticamente qual é o seu salário - e apenas o seu salário.

Vai omitir, de boa fé, eventuais ganhos com aplicações financeiras, porque simplesmente não se lembra, não lhe vem a cabeça.

Quem tem elevados rendimentos provenientes de lucros, juros, aluguéis e aplicações financeiras em geral, tende a omitir de propósito tais rendimentos, com medo do Fisco, sentimento natural e inescapável no mundo todo. Ou, então, no Brasil, com medo da criminalidade.

Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), organismo oficial, chegou a detectar 90% de sub-declaração de rendimentos nesse tipo de levantamento.

Fica claro, pois, que quem vive de salário declara o que ganha. Quem tem também outras rendas ou vive delas não declara o total, de boa ou má fé. Então, torna-se impraticável afirmar que houve queda na desigualdade, a não ser entre assalariados.

Por quê os economistas liberais põem em letra pequena que a queda na desigualdade está limitada aos salários? Minha suspeita: ao demonstrar que houve queda da desigualdade, sem especificar qual delas, fica implícito que as políticas que vêm sendo adotadas desde o governo Fernando Henrique Cardoso, continuadas por Lula e agora por Dilma, não precisam ser modificadas, uma vez que estão mexendo na ferida da iniquidade social.

Ou, posto de outra forma, os petistas não precisam voltar às suas velhas teses "Robin Hood", de tirar dos ricos para dar aos pobres, porque essa transferência já estaria ocorrendo sem precisar mexer na renda dos ricos.

Essa mistificação provavelmente esconde um aumento na desigualdade da renda "lato sensu". Basta saber que no ano passado o governo federal dedicou 5,72% do PIB brasileiro ao pagamento de juros de sua dívida. Já o Bolsa Família, o programa de ajuda aos mais pobres, consumiu magro 0,4% do PIB.

Resumo da história: para 13.330.714 famílias cadastradas no Bolsa Família, vai 0,4% do PIB. Para um número infinitamente menor, mas cujo tamanho exato se desconhece, vão 13 vezes mais. O economista João Sicsú, também da Universidade Federal do Rio de Janeiro, chegou a calcular em apenas 1 milhão de famílias o número de detentores de títulos públicos, generosamente remunerados pelo governo.

Fábio Barbosa, então presidente da Federação Brasileira de Bancos, contestou o número em conversa informal comigo. Mas não tinha ideia de qual seria o número correto. Mesmo que seja cinco vezes maior que o calculado por Sicsú, teríamos a seguinte equação: 13 milhões de famílias, os pobres entre os pobres, ganham 0,4% do PIB; 5 milhões de famílias, de classe média alta ou ricas, ganham 5,72% do PIB.

Se isso é distribuição de renda, é dos pobres para os ricos, uma observação feita, aliás, por um antigo membro da primeira equipe de Lula, o professor Carlos Lessa, então presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.

Observação repetida faz pouco por Silvio Caccia Bava, editor de Le Monde Diplomatique Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis:

"Desde o final da década de 1990 o Brasil vem transferindo anualmente de 5% a 8% do PIB para os ricos, por meio principalmente dos juros, amortizações e refinanciamentos da dívida pública interna. Quem compra títulos do governo brasileiro tem o maior rendimento do mundo! Quarenta e cinco por cento do orçamento geral da União, algo como R$ 635 bilhões em 2010, remuneram esse investimento. Isso sem falar nos R$ 116,1 bilhões de isenções tributárias/redução de impostos para os ricos e suas empresas. Para ter uma comparação, R$ 7,5 bilhões foram destinados em 2011 para o saneamento básico, num país onde 45% dos municípios não coletam esgoto".

Mas, atenção, não confundir redução da desigualdade, que não houve, com redução da pobreza, que houve, sim, como mostra o gráfico abaixo. Ou seja, o Brasil não caiu no pior dos mundos, ao contrário, por exemplo, de países como os Estados Unidos, em que os ricos têm ficado cada vez mais ricos e, os pobres, cada vez mais pobres. Nestes trópicos, os ricos continuam enriquecendo espetacularmente mas os pobres não estão ficando mais pobres. A distância entre eles é que continua igual - ou maior.



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