saúde: alta complexidade privatizada?
O custeio anual para a saúde pública no Rio Grande do Norte é de
aproximadamente R$ 775,4 milhões para todos os blocos de financiamento,
da atenção básica à alta complexidade, segundo dados do portal SUS -
Saúde com Transparência, mantido pelo Ministério da Saúde.
Nos primeiros
dois meses deste ano, o governo federal já repassou perto de R$ 274,1
milhões. No entanto, o montante que, aparentemente, seria suficiente
para dar assistência adequada à população, é carreado em grande parte
para a rede de saúde privada. Com maior aporte tecnológico, os hospitais
privados receberam, em 2011, mais de R$ 200 milhões somente com a
realização de procedimentos hospitalares e ambulatoriais de alta e média
complexidade.
Alberto LeandroHospital Deoclécio Marques é um dos que passa por problemas de superlotação por causa de contrato paralisado com a rede privada
As
informações estão disponibilizadas no portal DATASUS (base de dados de
29/03/2012). Do valor global da Média e Alta Complexidade, em 2011, que
foi da ordem de R$ 424,3 milhões para o RN, os recursos que convergiram
para a rede privada representam 47,27%. Somente na Alta Complexidade, as
unidades hospitalares privadas levam 85,75% dos recursos. No Estado, a
Alta Complexidade custou para o SUS, no ano de 2011, algo em torno de R$
16,5 milhões. O setor privado recebeu R$ 14,1 milhões. O valor global
destinado ao RN inclui repasses para Estado e municípios.
Já nos
dois primeiros meses do ano, considerando apenas as internações
hospitalares, a rede pública realizou 10.667 procedimentos, que geraram
um repasse de R$ 8.862.895,95. Mas a rede privada, apesar de realizar
menos, 7.715 procedimentos, recebeu R$ 8.517.899,95, cerca de R$ 340 mil
a menos. No caso dos procedimentos ambulatoriais, a alta complexidade
carreia para a rede privada 85,75% dos recursos transferidos pelo SUS
para a área.
Nos dois primeiros meses de 2012, dos R$ 16,5
milhões destinados à alta complexidade ambulatorial, R$ 14,1 milhões
ficaram com a rede privada. Na média complexidade, o percentual é menor:
32,07%. Do total de R$ 16,8 milhões, o setor privado recebeu R$ 5,4
milhões. Os recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) - instrumento
criado pela Constituição Federal, de 1988 - são deslocados para o setor
privado por meio de contratação de serviços, um instrumento legal.
Ao
realizar um procedimento, a unidade, hospitalar, gera uma AIH
(Autorização de Internação Hospitalar), que engloba três serviços: o
hospitalar (diárias, taxas de sala, materiais hospitalares e
medicamentos); o profissional (equipe médica) e os auxiliares de
Diagnóstico e Terapia. Já a unidade ambulatorial gera uma APAC
(Autorização de Procedimento de Alto Custo). Nos dois casos, os preços
obedecem à uma tabela única do SUS.
Contratos de serviços têm que ter "plus" para atrair interesse
Nos
estados e municípios, na maioria das negociações para contratação de
serviços, que a rede pública não disponibiliza, principalmente de alta
complexidade, os hospitais e clínicas, e mesmo os profissionais, não
aceitam a tabela do SUS.
"O setor público faz a chamada pública e
eles não se apresentam, por causa dos valores muito baixos, e dá
chamada deserta. É quando o que o gestor tem que reabrir a chamada e
negociar um plus mínimo porque o usuário tem que ter o serviço", detalha
Ana Tânia Sampaio, enfermeira, sanitarista e professora do Departamento
de Saúde Coletiva da UFRN .
Ana Tânia já exerceu cargos de
secretária de saúde no município de Natal (SMS) e adjunta, na Secretaria
Estadual de Saúde Pública (Sesap). Na licitação, cada hospital ou
cooperativa vai dizer quanto a mais da tabela SUS aceitaria para
prestar o serviço.
O problema, segundo ela, é que o plus sai do
orçamento público de estados e municípios. Ou seja, não está na conta
das transferências (blocos de financiamentos). "É por isso", asseverou,
"que muitas vezes se atrasa pagamentos".
Quando chega o dinheiro
da tabela SUS, segundo a professora, esse valor já é repassado, mas o
complemento, que é o bolo maior, fica na dependência de disponibilização
financeira por parte dos executivos, sejam eles estaduais ou
municipais, às secretárias.
Na rede pública, as referências nas
áreas de alta complexidade são os hospitais estaduais Walfredo Gurgel,
Giselda Trigueiro (doenças infecciosas) e Maria Alice Fernandes
(Infantil), e os federais, Maternidade Escola Januário Cicco e Hospital
Universitário Onofre Lopes, sobrecarregados pela demanda de todo o
Estado.
Historicamente, antes do SUS, a assistência de alta e
média complexidade era realizada pela Previdência, através do componente
assistencial. Eram beneficiados os trabalhadores que pagavam sua
contribuição. O Ministério se responsabilizava pelas ações primárias
(hoje atenção básica) e preventivas, como o controle de endemias.
Financiamento não é compatível
Desde
1993, primeiro ano que os municípios passaram a ser gestores do Sistema
Único de Saúde (SUS), o Ministério da Saúde deixou de executar ações e
transferiu seus serviços para estados e municípios. Um dos exemplos é o
controle de endemias, que passou a ser executado pelos municípios.
"Esses servidores federais, hoje, estão se aposentando e quem está
repondo são os municípios, quando podem", afirma a enfermeira,
sanitarista e professora do Departamento de Saúde Coletiva da UFRN, Ana
Tânia Sampaio.
Ela sustenta que estados e municípios receberam a
responsabilidade da gestão mas junto com ela não veio um financiamento
compatível. "Nesse processo", disse Ana Tânia, "a situação mais cômoda é
a da União". Segundo ela "com a implantação do SUS, como nenhum
município tinha rede estruturada de assistência, porque não eram
executores de serviços, o que conseguiram ter foi uma estrutura básica".
"O Ministério da Saúde repassa o valor do serviço, com base na
tabela SUS", disse Ana Tânia, "mas não repassa - e nunca repassou - a
condição para que estados e municípios se estruturassem para oferecer os
serviços que estavam assumindo. Por isso, estamos na dependência do
serviço privado". Nos últimos anos, a União não tem direcionado recursos
de investimento para equipamentos, pessoal, melhoria e ampliação dos
hospitais e não realiza concurso público para o nível de assistência.
No
levantamento feito pela TRIBUNA DO NORTE no portal Saúde com
Transparência, o Rio Grande do Norte recebeu no bloco de Investimento,
em 2011, R$ 11,6 milhões, para aplicação em todos os municípios
potiguares. Segundo Ana Tânia, municípios e estados estão mais
penalizados no financiamento do SUS. A sanitarista reconhece que também
existe a má gestão.
"Quando as pessoas apontam o orçamento parece
muito dinheiro", afirmou a chefe da Assessoria de Planejamento da
Secretaria Municipal de Saúde, Maria Auxiliadora Soares de Lima, "mas é
tudo para pagar serviços de Natal e de outros municípios. O mesmo ocorre
com o Estado, que recebe apenas para pagar procedimentos dos municípios
e de suas unidades".
No caso do município de Natal, a projeção é
de que receba algo em torno de R$ 217 milhões, dos quais R$ 104,5
milhões é destinado ao pagamento de procedimentos dos municípios
pactuados. Ou seja, aqueles que enviam pacientes para Natal, a partir de
um teto financeiro contratado junto à SMS/Natal.
Esse teto é
definido na Comissão Bipartite (que agrega os gestores dos 167
municípios do RN). Segundo ela, o município está investindo de recursos
próprios 22% na Saúde, mas o valor ainda não é suficiente. Somente para a
média e alta complexidade, segundo a coordenadora da Regulação, da SMS,
Saudade Azevedo, é de R$ 82,1 milhões para 2012.
Judicialização onera a saúde
A
judicialização é outro ponto controverso. Em Natal, tem paciente que
ingressou na justiça, ganhou a causa e o município paga R$ 85 mil, por
mês, de um medicamento. Estão em andamento no país mais de 240 mil
processos na Justiça com pedidos de acesso a medicamentos e a
procedimentos médicos e hospitalares pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Tudo isso fura o financiamento.
Os dados são de levantamento
parcial realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 32 dos 91
tribunais brasileiros. Para se ter uma ideia do quadro atual, os custos
com esse tipo de ação já bate o patamar de R$ 25 milhões, dinheiro que
sai do orçamento público para atender liminares e tutelas judiciais.
Termina sendo uma via que beneficia o indivíduo que tem mais
conhecimento, que pode pagar um advogado. O cidadão que não tem acesso à
informação, que não tem o conhecimento, fica dependendo de uma ação
coletiva que só o Ministério Público pode encaminhar.
Para os
especialistas, a judicialização é problema, porque o usuário tem o
direito adquirido, mas não foi pensado o quanto em investimento teria
que se colocar para dar essa cobertura integral.
Enquanto
secretária municipal de Saúde de Natal ela criou um comitê para
minimizar a judicialização. O grupo atua até hoje. Para os especialistas
ouvidos pela TRIBUNA DO NORTE, "considerando a universalidade, o
direito universal integral exige muito além do que o financiamento
permite". Eles sustentam que há muito menos receita e mais despesas.
Procedimentos custam mais na rede privada
Das
AIHs pagas nos primeiros dois meses deste ano, o valor médio destinado
à rede privada supera o da rede pública, em mais de R$ 1.000,00,
segundo dados do Datasus. Na rede pública estadual, o valor médio foi de
R$ 917,18, no mês de janeiro deste ano, na soma de todos os
procedimentos realizados. Na privada, o valor médio foi, no mesmo
período, de R$ 2.447,69. Essa diferença se dá não apenas pela maior
capacidade da rede privada, mas porque a oferta para o SUS têm
procedimentos de maior custo.
Em sua maioria não são realizados
pela rede pública. É o caso do tratamento de oncologia e de muitos dos
tratamentos na área vascular e cardiológica. O SUS paga, na rede
privada, R$ 5.437,00 por uma angioplastia coronariana com implante de
stent e R$ 1.057,65 por procedimento de amputação/desarticulação de
membros. Um dos custos mais elevados na rede pública está no atendimento
ao politraumatizado, que chega a custar R$ 2.074,00. Na rede privada,
os procedimentos sequenciais em neurocirurgia e ortopedia ficam em R$
4.970,00.
A crise de atendimento dos hospitais Walfredo Gurgel,
em Natal, e Deoclécio Marques, em Parnamirim, é o maior retrato da
dependência do SUS ao privado. As duas unidades estão superlotadas por
causa da suspensão de cirurgias de alta complexidade, entre as quais as
da ortopedia, contratadas em três hospitais privados - Memorial, Médico
Cirúrgico e Clínica Paulo Gurgel, por atrasos nos repasses financeiros
às unidades e a Cooperativa dos Médicos do RN (Coopmed). Esses
procedimentos foram retomados somente na semana passada.
Além
disso, os hospitais vivem uma crise aguda de desabastecimento e de falta
de leitos, entre os quais de UTI. As públicas, privadas e filantrópicas
disponibilizam para o SUS 1.306 leitos cirúrgicos e 2.175 clínicos para
todo o Estado, segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde
(CNES). No caso da terapia intensiva, o CNES mostra 365 leitos
disponíveis para o SUS, dos quais 62 no HMWG.
Em média, 85
pacientes estão internados em corredores da unidade e, pelo menos, 12,
estão em leitos improvisados de UTI. Na semana passada, a Unidade de
Emergência (a Reanimação), que estava com seis leitos improvisados de
UTI e sem a devida assistência por 24 horas.
Bate-papo
Ana Tânia Sampaio, professora do Departamento de Saúde Coletiva da UFRN
A senhora defende que o financiamento seja revisto?
O
problema é que o financiamento cobre só o custeio. Esses quase R$ 800
milhões significam pagamento de um teto de procedimentos produzido, sem
considerar o que estados e municípios estão gastando a mais para poder
garantir e ampliar serviços. O investimento é um bloco pequeno demais.
Há muito tempo que a União não investe no sistema de saúde. O
financiamento precisa ser mais ético na sua conjuntura.
Mas há o investimento no programa das UPAs?
As
UPAs foram o único investimento que realmente a União fez porque é um
programa de governo, e ele tinha todo interesse que funcionasse, mas
sempre dividindo a responsabilidade com estados e municípios. Esse foi o
único recurso de investimento que recebi enquanto secretária (Municipal
de Natal). Deixei a UPA (Pajuçara) prontinha, mas não tive o prazer de
inaugurar, porque a gestão foi terceirizada e eu não concordo. Uma coisa
é você comprar o que não tem, outra coisa é pegar o patrimônio público,
com todas as condições de funcionar, e entregar para o setor privado.
Isso triplica o custo e o serviço público nunca vai ter a chance de
mostrar que é capaz de fazer com qualidade.
A senhora entende que há má distribuição de recursos?
Veja
só. O mais caro na assistência é a alta complexidade e é o SUS que
garante esse serviço para o cidadão brasileiro, seja no público ou
privado. Quem garante transplante, quimioterapia, quem está fazendo as
cirurgias de alta complexidade é o SUS. O problema é que hoje o dinheiro
só está dando para custeio e se suspende o serviço, o usuário vai ficar
desassistido. O que defendo é que tem que ter sim um recurso extra, de
investimento, para estruturar as redes municipais e estaduais, ou então a
gente vai ficar a vida toda refém do privado e apontando o dedo para a
assistência. Se o investimento existisse, na prioridade, na atenção
básica, na valorização do servidor, no monitoramento e avaliação da
rede, na qualificação das unidades, aos poucos o SUS ia se libertando do
privado.
Que mudanças a Emenda 29 pode trazer?
Desde
2000 se lutava pela regulamentação da Emenda Constitucional 29. O
interesse dos sanitaristas e de todos que defendem o SUS era de que ela
fosse aprovada fixando percentuais mínimos de 12%, para os estados, 15%
para os municípios, o que aconteceu, e de 10% para a União. Mas, ela foi
votada silenciosamente, mantendo a União numa situação muito cômoda -
da forma como queria - com atualização anual dos repasses com base no
PIB do ano anterior, um índice, muitas vezes, menor que o da inflação,
sem fixação de um teto. Hoje, a União é a que menos está comprometida
com o financiamento do SUS. Outro golpe foi o corte orçamentário da
Saúde, de R$ 5 bilhões, logo depois da votação da PEC 29.
O caos na rede se aprofunda com essa demanda crescente e complexa?
Sim.
Estamos tendo mais idosos, que precisam de cuidados, e, a cada dia, vão
surgindo doenças novas e temos que conviver com as antigas. É um quadro
epidemiológico que esbarra em uma rede cada vez mais atrofiada e cada
vez mais dependente do setor privado. Hoje, a gente tem que agradecer
por, pelo menos, poder complementar com o privado. Pior é quando a gente
entrega nosso patrimônio para o outro, muito mais caro, e aí o dinheiro
não vai dar mesmo, vai faltar até para o básico. E só está sobrando
para o usuário.
Tribuna do norte
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