Síndrome de abstinência
por José Paulo Kupfer
São evidentes, já esta altura, as resistências ao esforço
de redução das taxas de juros na economia brasileira. Nisso, os
argumentos usados para desclassificar a ação do governo, nele incluído o
Banco Central, apresentam analogias com as razões levantadas, em tempos
passados, para desqualificar os esforços de controle da inflação e
estabilização da moeda, mesmo no caso do bem sucedido Plano Real.
Há muitos paralelos entre uma situação e outra. A começar do fato de
que, apesar do lero-lero de que todos perdem com juros altos e inflação
alta, tanto o controle da inflação quanto a queda dos juros produzem
ganhadores e perdedores. Se não fosse assim, não faria sentido temer,
como muitos temem, que os bancos, ao reduzir taxas, percam rentabilidade
e até registrem prejuízos. Uma lógica de botequim seria suficiente para
indicar que, se todos ganhassem com a queda dos juros e da inflação,
não haveria nem inflação nem juros altos.
Esse medo, exposto aqui e ali como motivo para apostar na ineficácia
do atual ataque aos juros altos, permite levantar a suspeita de que não
há um entendimento pacífico de como operam as empresas em geral. E muito
menos de como elas adaptam suas estratégias às características de seus
respectivos mercados, em ambientes mutantes.
Em qualquer mercado, incluindo o setor bancário, é possível obter
rentabilidade praticando preços altos ou baixos. A margem será
determinada pelo tamanho da demanda, a estrutura dos custos de produção,
o grau de essencialidade ou do valor intangível da mercadoria/serviço,
conveniência do atendimento etc. etc.
Dizer que, com juros mais baixos, haverá uma fatal redução de
rentabilidade e uma trajetória inexorável de aumento da inadimplência é,
no mínimo, esquecer os conceitos de ganhos de escala e de diluição de
custos unitários. Pode ser que sim, pode ser que não. Depende de uma
série encadeada de fatores e da forma como o negócio é administrado.
Em relação à inadimplência, dependendo das medidas de prudência na
concessão de empréstimos, ainda que em conjuntura de volumes ampliados
de crédito, tudo o que se conhece é que a tendência, com juros menores, é
de redução de riscos. Se isso ocorrer, as provisões também podem se
reduzir e, se elas se reduzem, abrem espaço para ampliar lucros.
Outro paralelo entre os esforços atuais para reduzir juros
excessivamente altos e aplicados na luta contra a inflação
excessivamente alta é que, tanto num como no outro, o conhecimento sobre
as causas dos fenômenos foi se acumulando, ao longo do tempo, com base
num intenso debate teórico e em ações práticas de limpeza do terreno.
Foram anos e anos, no caso da inflação, de tentativas frustradas.
Mas, a experiência acumulada e as discussões em torno do “mistério da
inflação alta” levaram, finalmente, ao brilhante diagnóstico de que a
chave do problema se localizava na “inércia inflacionária”, reflexo de
um longo período de gradual generalização da indexação na economia. Nem
por isso, a Unidade Real de Valor (URV), artifício que carregava o gene
da nova moeda desindexada, mas empurrava a inflação para cima, foi bem
compreendida e ficou imune a críticas e previsões do fracasso da
experiência.
Muita saliva, tinta e papel, analogamente, tem sido gasto na busca da
solução do “mistério dos juros altos”. Parte das causas já apontadas,
como alguns resquícios do período de hiperinflação, que conectam a
política monetária à administração da dívida pública, estão sendo
removidos. Também se aprendeu que a própria estrutura do mercado
bancário – um oligopólio que se poderia entender como “natural” na
prática –, estimula a cobrança de juros acima dos “normais”. O
diagnóstico é o de que, não sendo o caso de enfrentar a natureza, é o
caso de controlar seus efeitos – como se faz com os diques de contenção
das marés.
Deve-se reconhecer que há elementos ainda a enfrentar, antes que
sejam asseguradas todas as condições para que os juros caiam e
permaneçam baixos. Mas, com a crise global, que lançou as economias
mundo afora num ciclo deflacionário, surgiu uma janela de oportunidade
para cortar a taxa básica e abrir espaços para um recuo geral dos juros.
Ainda não foram removidos, quase duas décadas depois, todos os
entulhos inflacionários que impregnaram a economia a partir de fins dos
anos 50 até o Plano Real. Nem por isso, a inflação voltou ao que era.
Insistindo nas analogias, o mesmo se poderia dizer das ações para levar
os juros a níveis civilizados.
Vencer o vício dos juros altos, assim como tem sido superar o da
inflação alta, exige diagnósticos inovadores e, obviamente, corretos.
Mas, além de medidas técnicas, exige também operar no plano dos
comportamentos arraigados. E enfrentar, de novo como no caso da
hiperinflação, a síndrome de abstinência que uma quebra da longa
dependência dos juros altos parece já estar provocando.
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