terça-feira, 4 de setembro de 2012

SOCIOLOGIA: Escritos urgentes sobre tempos áridos

do Diário do Nordeste


Em prosa vertiginosa, o sociólogo Zygmunt Bauman repassa os dilemas do tempo presente
Em seu novo livro, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman brinca de jornalista. Por meses, se deteve na reflexão de um tema contemporâneo por dia. O resultado é um diário de ensaios breves que oferece uma cartografia sobre o tempo presente

Existe uma diferença entre as palavras, os objetos e as suas representações. O artista visual belga René Magritte (1898 - 1967) fez desta encruzilhada tema de sua obra “A traição das imagens”(1928/29) na qual desenha e para reforçar sua tese pinta “isto não é um cachimbo”. É apenas um desenho, adverte.
O famoso cachimbo de Magritte é usado na capa do novo livro do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que traz o sugestivo título “Isto não é um diário”. Guardadas as devidas proporções – um usa a tinta e tela; o outro, as palavras e o computador – é impossível não achar alguma semelhança entre as duas obras. “Nem a palavra, nem o desenho do objeto nos podem garantir que o objeto existe, de fato”, escreveu o pintor. Aqui, Bauman reúne impressões de mundo, algumas vindas da alma, chegando a sensibilizar o leitor, como quando ele, um dos mais lúcidos pensadores sociais contemporâneos, refere-se a sua amada companheira, Janina, morta há dois anos. E o livro pode representar, sim, um diário.
Quem sabe, não escrito na primeira pessoa, no qual são relatados fatos ou impressões de uma pessoa apenas. Também pode não ser o diário de Bauman, até porque sua vida não caberia num livro. No mundo das aparências ou dos simulacros desvendado pelas lentes de Magritte, certamente, o que não é um diário para o seu autor, é para os leitores, considerados sobreviventes do que Bauman chama de “mundo líquido moderno”. 

São impressões que ganham vida a partir da análise do sociólogo polonês, que escolheu o dia a dia, a começar pela leitura de articulistas de importantes jornais como “Le Monde” e “The New York Times”, livros, entrevistas que concede, sem perder de vista o arcabouço cultural e de vida que acumula.

Com a elegância de quem confessa sentir “prazer em escrever”, atividade que considera jogar com as palavras, o autor passeia por assuntos que permeiam a sua obra, sobretudo, os últimos trabalhos. Alguns temas são reincidentes, como por exemplo, a preocupação com o futuro dos jovens; a falta de perspectiva profissional para o que denomina de “refugo humano”; a bolha imobiliária americana; a perseguição aos ciganos na França; os desmando institucionais na Itália da Era Berlusconi; o papel do países emergentes, não esquecendo o Brasil com o seu Bolsa Família; passando pela Primavera Árabe, sem deixar de lembrar da hipocrisia que veio à tona por parte de líderes de potências mundiais que alimentaram ditadores, durante vários anos, enquanto era conveniente.
Nenhum fragmento da realidade líquido-moderna passa longe dos olhos de Bauman. “Sinto-me incapaz de pensar sem escrever”, anota, em seu horror à solidão. É dessa forma que tenta justificar a sua paixão por escrever, que passa, antes, pelo exercício do pensamento, lógico. Em “Sobre o sentido e a falta de sentido de se fazer um diário”, como começa o seu novo livro, pergunta: “Qual é, afinal, a diferença entre viver e contar a vida?”. Assim, o sociólogo até tenta, mas não consegue falar no singular. Muito menos de sua intimidade, preferindo enveredar para a coletividade. De início, fala logo de Saramago, autor que revela ter descoberto tardiamente, pensamento que vai permear grande parte das suas análises. Assim como os alemães Ulrich Beck, Georg Simmel, Walter Benjamin. Além de Anthony Giddens e Michel Agier, este último, evocado ao tratar do tema exílio e refugiados, assunto que toca muito de perto sua alma, ao se considerar “estar deslocado”, sentimento que mesmo após o exílio o persegue, justificando ter medo de multidões e horror a clamores. Hoje, as pessoas estão exiladas nos seus próprios territórios, parecendo mais uma condição da “liquidez” moderna.
Do “bug do milênio”, que acabou não acontecendo, passando pela “eternidade do internet”. Para isso faz uma conexão com Marx ao afirmar que “a história tende a se repetir: da primeira vez, ela é drama, da segunda, farsa”. Sem deixar de lado o medo e a insegurança, bem como o advento das classes médias, principalmente nos países emergentes. O surgimento do estado-nação e as leis de seguridade social passam pelo crivo de Bauman, que reconhece a falácia de “culpar os migrantes e estranhos pela precariedade da vida, do estado”. Sobre os EUA, “super potência super quebrada”, fazendo referência à crise que começou em 2008, chamada de bolha imobiliária, diagnostica ser “uma sociedade de arranjos que estão se desmoronando”. Não poupa os discursos dos políticos do tipo: “Nós podemos”, fazendo relação com a filosofia do salve-se quem puder dos reality shows.
Suas análises são realistas, um pouco ácidas, mas demonstra sempre esperança, considerando a crítica como uma ferramenta fundamental para “surfar” sobre as areias movediças do “mundo líquido moderno”. Avisa que a próxima bolha pode estourar e não adianta dizer que não foram avisados. Nesse aspecto, a análise é pertinente ao Brasil, país mergulhado numa onda de economia de consumo a fim de enfrentar a crise mundial. Compara o capitalismo a um parasita (faz isso no livro “Capitalismo Parasitário”) que, quando está definhando, procura um novo hospedeiro. Chama de “orgia consumista” os mecanismos usados para conter a crise mundial, baseada na oferta de crédito fácil.
Geração zero
Outro assunto sobre o qual Bauman debruça-se, diz respeito aos jovens. Depois das gerações X, Y e Z, agora, é a vez da “geração zero”. É tachada assim pela perspectiva de emprego zero e de futuro também devido ao desenvolvimento do mercado de exclusão. Para o autor, “todos os mercados de consumo passam dos limites”. Ao ser indagado sobre o fenômeno “pós-trabalho” diz não fazer sentido, tanto que os estudantes italianos voltaram as ruas para pedir trabalho e melhores condições de vida.
Sempre atento e crítico, o pensamento de Bauman capta cada fragmento do desenrolar da vida da sociedade contemporânea. Fala sobre o advento da “sociedade confessional” que prega o fim da privacidade, “uma invenção moderna básica”, chamando a atenção para aqueles que preenchem a solidão nas redes sociais digitais. Ele adverte que “curtir” e “cutucar” online é diferente de “abraçar” offline.
O comportamento das pessoas é influenciado pelas redes sociais digitais. No caso do Facebook, um usuário médio tem 130 amigos e gasta milhares de minutos mês conectados, sendo a solidão uma das principais motivações para essa procura de convívio online. A sociedade confessional desemboca nos talk shows, nos quais celebridades fazem confissões de intimidades, algumas, guardadas durante anos. Marca o fim da privacidade, um dos ícones da modernidade. As redes sociais digitais possibilitam “a apresentação do eu interior”. A indagação de Bauman é: “Será que o desconcertante sucesso do Facebook não é consequência de ele fornecer uma feira em que a necessidade pode encontrar-se todos dia com a liberdade de escolha?”.
O livro é dividido em sete partes. A primeira começa em setembro de 2010, e de maneira intimista, quando é possível perceber e até ouvir a voz de um senhor de 85 anos que começa a fazer tomadas, quase cinematográficas das suas experiências no mundo. Nada passa sem o registro desse contador de fatos da vida real.
A preocupação com a chegada aos 9 bilhões de habitantes pelo planeta terra é registrado por ele, considerando “uma ameaça aos países pobres os mais densamente povoados”. Chama a atenção para a “redundância humana”, considerado como o fantasma da superpopulação que hoje ganha conotação diferente.
A transformação da sociedade de produção, na primeira metade do século XX, para a de consumidores, começa a ser gestada a população considerada “excedente”, formando o exército de “lixo humano”. Segundo Bauman, o problema é para aonde remover esse lixo, uma vez que o mundo vive a era pós-colonial. No entanto, essa reserva de dejetos humanos forma um subproduto inseparável da modernização. O não-diário de Bauman identifica, ainda, que a redundância humana é um problema global, mas que exige soluções locais. Existe uma procura por “terras virgens” no planeta para acomodar esse lixo redundante. “Até quando pessoas são retiradas dos seus locais?”, indaga, embora faça menção às facilidades para o deslocamento das pessoas atualmente. Alerta para a existência de grupos especializados em contrabandear refugos humanos.
No entanto, cada vez mais, os países que já serviram de refúgio a povos excedentes, fecham suas fronteiras, numa demonstração de que o mundo mudou. Até mesmo a Europa tenta exportar os seus excessos, sobretudo aqueles que não foram absorvidos pela revolução tecnológica. O difícil é encontrar um lugar, reconhece o autor. A representação do diário coletivo, apresentado por Bauman, finaliza em março de 2011 com uma análise sobre o escritor britânico Herbert George Wells (1866-1946) a quem Bauman reverencia como “um artista”; e ele, um “humilde artesão”, compara.

LIVRO

Isto não é um diário
Zygmunt Bauman
Tradução: Carlos Alberto Medeiros

Zahar
2012, 252 páginas
R$ 39,90


IRACEMA SALES
REPÓRTER

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