“O que é o capitalismo?” Foi o
tema que uma quinzena de estudantes secundaristas me pediu para tratar com
eles, faz mais de um ano, numa aula-livre de trinta minutos em meio à ocupação
da sede do governo do Wisconsin, Estados Unidos (cf. texto de Ruy Braga sobre a ocupação, aqui no Blog da
Boitempo, e meu, em coautoria com Erik Olin Wright, na revista Lutas Sociais,
25/26). A discussão fazia parte de um programa de atividades para
os estudantes, cujos professores haviam paralisado as aulas para defender seus
direitos sindicais. Sem referências bibliográficas e evitando jargões, defini
com eles – talvez o público mais dinâmico, engajado, curioso e abertamente
crítico com o qual já estive – o que entendo por capitalismo e transcrevo
abaixo parte do resultado dessa discussão (entre parênteses e em itálico,
alguns comentários e dicas de leitura para os leitores do blog).
1) O capitalismo é um modo de organizar a
economia, isto é, a produção e a troca de bens e serviços. Uma economia
capitalista reúne três elementos-chave, que a definem: a propriedade privada
dos meios de produção, o mercado de trabalho e a troca de produtos num mercado
visando ao lucro. Volto a esses três elementos a seguir.
2) Em vários momentos da história e até hoje,
o capitalismo coexistiu com outras formas de organizar a economia. Em vários
países o funcionamento de empresas capitalistas, cuja organização e prática se
definem pelos três elementos que citei acima, depende das matérias-primas que
lhes chegam de modos de produção não capitalistas, como a escravidão, um modo
de organizar a economia em que não há mercado de trabalho. (Chico de
Oliveira, em Crítica à razão dualista/O ornitorrinco [Boitempo,
2003], trata do casamento do capitalismo com formas econômicas arcaicas no
Brasil, que contribuem para a reprodução do capitalismo. A tese do Chico de
Oliveira sugere que modos de organizar a economia se atrelam, misturam e
modificam, criando toda sorte de híbridos. Nessa perspectiva, pode-se falar de
capitalismo apenas em teoria e no geral, já que formas historicamente
específicas de capitalismo são modificadas pelas relações sociais e econômicas
com as quais coexistem.) De
certo modo, vivemos atualmente no capitalismo não porque este é o “único” modo
de organizar a economia onde estamos, mas porque é o modo dominante.(Dominação
se refere aqui tanto ao fato de o capitalismo ser o modo de organizar a
economia mais comum quanto, e principalmente, ao fato de o capitalismo
geralmente impor sua lógica sobre outros modos de organizar a economia, que em
muitas vezes só continuam existindo porque são funcionais para a reprodução do
capitalismo: as economias não capitalistas que continuam existindo hoje não
são, em sua maioria, anticapitalistas.)
3) As empresas que organizam a produção e põem
seus produtos no mercado são propriedades privadas no capitalismo. Acima, falei
de meios de produção, que é costume definir como tudo aquilo que é usado na
produção e não é humano, como as matérias-primas, edifícios, ferramentas,
máquinas, infraestrutura etc.(Refiro-me a uma definição
“costumeira”, pois há dentro da tradição marxista aqueles que afirmam que parte
dos meios de produção são humanos, à medida que correspondem à materialização
de trabalho humano, como é o caso de máquinas.) Os capitalistas detêm o controle
privado dos meios de produção. Vale notar que esta não é a única forma de
organizar a propriedade, que pode ser estatal e cooperativa. Ao proprietário
privado está geralmente garantido o poder de decisão sobre como usar seus bens.
Isso é um aspecto importante, pois lhe garante o controle sobre investimentos
futuros – o capitalista decide, só, se quer investir mais na economia, em qual
ramo da economia, com quais consequências – e decisões sobre investimentos
afetam diretamente a sociedade, seu nível de desemprego, as condições básicas
da vida.
4) No capitalismo, a produção visa ao lucro, isto
é, à venda no mercado. Em outros modos de organizar a economia, a produção não
visa necessariamente ao lucro, mas saciar necessidades básicas dos produtores e
membros da comunidade ou simplesmente disponibilizar gratuitamente bens e
serviços. A obtenção do lucro faz parte de um ciclo: os capitalistas começam
com uma certa quantia de dinheiro, que usam para comprar meios de produção e
contratar trabalhadores, com o intuito de produzir alguma mercadoria a ser
vendida. Na venda, os capitalistas esperam conseguir de volta o dinheiro que
investiram no início do ciclo e algum excedente – o lucro –, que podem utilizar
para conseguir ainda mais lucro, recomeçando o ciclo. (Há inúmeros
livros sobre esse elemento do capitalismo, objeto-chave da economia política marxista. Trabalho assalariado e capital &
Salário, preço e lucro, de Marx [Expressão Popular, 2006],
é uma obra clássica sobre o tema, além de acessível e curta. Também sugiro a
leitura de dois importantes manuais de economia política, Iniciação à teoria econômica marxista,
de Ernest Mandel [Antidoto, 1978], e Teoria do desenvolvimento capitalista,
de Paul Sweezy [Zahar, 1976].)
5) As pessoas que trabalham nas empresas
capitalistas são contratadas num mercado de trabalho. Não são elas mesmas as
proprietárias das empresas. Na consolidação do capitalismo como forma dominante
de organizar a economia, houve um processo de concentração dos meios de
produção por algumas famílias e, mais tarde, corporações – o que significou uma
contínua expropriação da maioria da população daquilo que tradicionalmente
usavam para garantir sua sobrevivência, especialmente pequenas parcelas de
terra. (Um dos
principais estudiosos desse processo de expropriação é o geógrafo David Harvey.
Vale conferir seus dois artigos na revista Lutas Sociais, disponíveisaqui e aqui.) Não restou à maioria
da população outra alternativa além de trabalhar para os donos dos meios de
produção. Irônico, Marx se referiu a esse elemento do capitalismo como a dupla
liberdade dos trabalhadores: estão livres da propriedade dos meios de produção
e estão livres para trabalhar para o capitalista ou morrer de fome.
6) Porque não tem outra forma de garantir sua
sobrevivência, o trabalhador é obrigado a trabalhar para o capitalista. Os
donos dos meios de produção exploram o trabalhador, pois recolhem benefícios
materiais de sua atividade. Há um componente moral forte no uso do termo
“exploração”, mas, aqui, pensemos simplesmente na relação entre o capitalista e
o trabalhador que o termo descreve: o dono dos meios de produção usurpa o
trabalhador, pois toma para si, para seu lucro, parte do que este produz. A
outra parte é usada para pagar o salário, geralmente o que é necessário para o
trabalhador sobreviver e, no dia seguinte, estar pronto para ser explorado mais
uma vez. (Há uma
vastíssima literatura sobre a exploração no capitalismo, que marca fundamentalmente
a escola de pensamento de Ricardo Antunes, que coordena duas coleções sobre
esse tema: Mundo do
Trabalho [Boitempo,
38 livros até 2011] e Trabalho
e Emancipação [Expressão Popular, 18 títulos até
2011].)
7) A relação entre o capitalista e o
trabalhador é interdependente. O trabalhador, sobre quem pesa a dupla liberdade
enunciada por Marx, precisa do capitalista para ter um salário. Mas para
garantir e aumentar seu lucro o capitalista também precisa do trabalhador, ou
mais especificamente precisa que o trabalhador aceite trabalhar e também que se
entregue com intensidade máxima a sua atividade produtiva. Quanto mais o
capitalista precisa do trabalhador, mais o poder do trabalhador aumenta: poder
para reivindicar aumentos de salário, melhores condições de trabalho, políticas
sociais mais justas. Ao capitalista o poder do trabalhador aparece, geralmente,
como um entrave para a obtenção de lucro. Os donos dos meios de produção
desenvolvem formas de conter o poder do trabalhador, como a organização da
produção de tal modo que iniba reivindicações de empregados, a repressão, a
realização de acordos com governos para que coíbam a organização dos
trabalhadores, a ameaça de deslocar as fábricas etc. (Ainda pouco
conhecido no Brasil, o sociólogo Michael Burawoy é um dos principais expoentes
do estudo da relação entre capitalistas e trabalhadores no espaço mesmo da
produção. Em especial, conferir seu Manufacturing Consent [Produzindo o
consentimento], um livro clássico, possivelmente publicado pela Xamã em 2012.)
8) Uma característica fundamental para a
dominação do capitalismo sobre outras formas de organizar a economia é que
conseguiu manter-se relativamente estável, apesar de grandes mudanças
tecnológicas, disputas políticas de amplitude mundial, graves crises
econômicas. Para entender a capacidade do capitalismo de sobreviver e
reproduzir-se, é preciso analisar como cada um dos três elementos que o definem
– a propriedade privada dos meios de produção, a troca de produtos no mercado e
o mercado laboral – se sustenta no tempo. Para entender a possibilidade de
formas socialmente mais justas de organizar a economia serem criadas, é preciso
desenvolver uma alternativa econômica, cuja organização da propriedade –
incluindo sua dissolução –, da troca de produtos e da produção seja tão ou mais
robusta e eficiente do que a economia capitalista e, além disso, garanta uma
vida social digna e sustentável. (Sobre
alternativas ao capitalismo, conferir o dossiê “Novas perspectivas do socialismo”, Margem Esquerda, número
17.)
***
Estão disponíveis em ebook dois livros de autores mencionados nesta
coluna: Crítica à razão dualista/O ornitorrinco, de
Francisco de Oliveira, e O enigma do capital, de David Harvey. Clique
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***
João
Alexandre Peschanski é
sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de
redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas.
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