por Mão Visível
Ou, pelo menos, esta é a expressão consagrada por Jean-Paul Sartre. Já eu, ávido leitor de histórias em quadrinhos (graphic novel, romance gráfico, mesmo sendo um termo inventado pelo gênio Will Eisner, ainda me soa como desculpa para adultos lerem HQs), prefiro a mitologia do Sandman, de Neil Gaiman: somos nós quem fazemos nosso próprio inferno.
E por que digo isso? Porque segundo nosso insigne Ministro da Fazenda os problemas que hoje vivemos, como o aumento do risco-país, a possibilidade de rebaixamento da avaliação da nossa dívida, a depreciação da moeda e outros, resultam do “inferno astral” da política fiscal. Confesso que não sabia das inclinações astrológicas do ministro, mas, pensando bem, isto certamente ajuda a entender a precisão internacionalmente reconhecida de suas previsões.
De qualquer forma, a noção que a política fiscal passa por um “inferno astral” beira o ridículo (já do outro lado da borda, bem entendido). A piora das contas públicas é o resultado de um esforço intencional, que, a bem da verdade, não vem de hoje. Há tempos que o governo vem se engajando numa tentativa nada sutil, embora bem sucedida, de minar as instituições criadas para impedir a repetição dos descalabros que foram a marca registrada do país por muitos anos.
Começou de forma quase inocente, propondo a dedução dos investimentos em saneamento para fins de aferição da meta fiscal. Por exemplo, se a meta para o superávit primário fosse R$ 100, mas os investimentos em saneamento equivalessem a R$ 10, um saldo de R$ 90 seria considerado adequado. A ideia, nobre como sempre, era liberar os investimentos em saneamento do “arrocho fiscal”. Desnecessário dizer, nem por isto os investimentos no setor decolaram.
Mais à frente a mesma cláusula de escape foi ampliada para os investimentos do PAC1, PAC2 (que começou sem que o PAC1 fosse executado) e, se deixarmos, qualquer PAC que aparecer pela frente.
Mais recentemente as desonerações tributárias também passaram a ser “descontadas” da meta, para fins de política fiscal “anticíclica” (que, como já mostrei, é tão anticíclica quanto um relógio quebrado). O resultado é que ninguém mais sabe qual é, de fato, a meta fiscal, o que não faz a menor diferença porque o governo muitas vezes não consegue cumprir sequer a versão “caçulinha” do superávit primário.
Quando isto ocorre, para fins puramente formais, recorre a estratégias nada ortodoxas de contabilidade pública, contando endividamento novo como receita, hipotecando receitas futuras, etc. A “contabilidade criativa” se tornou também uma das características mais marcantes dos últimos anos, seja através do “Fundo Soberano”, seja pela contabilização de receitas imaginárias oriundas da cessão onerosa de petróleo.
Por fim, agora é a própria Lei de Responsabilidade Fiscal, até então simplesmente contornada, que se viu atingida em cheio com a proposta de renegociação das dívidas de estados e municípios com a União.
Assim, ao olharmos para trás o que vemos são apenas os destroços das instituições fiscais que demandaram anos de cuidadosa construção.
É contra este pano de fundo de demolição institucional que deve ser interpretada a deterioração visível das contas públicas que explorei na semana passada. Os resultados tem sido ruins, sem dúvida, mas a percepção (tardia) dos agentes é de um problema bem mais profundo do que os números lamentáveis registrados este ano.
Num mundo de fluxos de capitais mais escassos é claro que – ao contrário do observado nos últimos anos – a parte do leão deve ficar com aqueles que exibem fundamentos mais sólidos. O Brasil, a caminho de déficits externos da ordem de 4% do PIB (ou mais), vai precisar destes recursos, mas adota postura que ignora esta realidade, manifesta inclusive na negação do problema fiscal.
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Guido, el vidente |
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