O Brasil não vai bem, a
julgar pelos indicadores macroeconômicos, ainda mais quando se considera o
prometido, ou o potencial. O crescimento é medíocre (e não há crises para
servir como álibi), a inflação está perigosamente próxima de uma região muito
escorregadia onde atolaram e afundaram alguns países vizinhos, e as contas
externas e fiscais permanecem flagrantemente fora do lugar. Há problemas
setoriais talvez explosivos (como no setor de energia, petróleo e também na
mobilidade urbana), a produtividade estagnou há anos e a confiança do
investidor (nacional e estrangeiro) atingiu os piores níveis em muitos anos.
Quem duvida que o
governo perdeu a mão em matéria de macroeconomia?
A ideia que existe uma
matriz econômica alternativa , como a crença na vida em outros planetas,
costuma enclausurar-se num pequeno círculo de crentes e muito raramente é
transportada para o terreno prático, onde invariavelmente fracassa. Muitos
presidentes, por excesso de malícia ou ingenuidade, caíram nessa conversa, e
aqui não foi diferente. A administração Dilma Rousseff experimentou o seu
choque heterodoxo, mas não inovou em matéria macroeconômica, nem mesmo em
contabilidade pública: os erros são todos velhos, assim como os efeitos
especiais.
Não há nova matriz macroeconômica , e a convicção das autoridades ao
proclamá-la cria apenas uma ilusão de legitimidade. Como o juiz de futebol que
marca pênalti inexistente, e antecipando-se às vaias, pune o defensor com
cartão amarelo ou vermelho, fingindo uma certeza que todos sabem que ele não
tem.
Mas por que tanta
insistência em desafiar os consensos internacionais em macroeconomia?
Não me parece que esta
ousadia tenha nascido das autoridades econômicas, cujas inclinações heterodoxas
são bem conhecidas, exatamente como suas limitações. Os grandes pensadores
heterodoxos exalam independência e descompromisso, atributos louváveis, mas que
os afastam do encargo de formular soluções e de assumir responsabilidades.
Talvez por isso mesmo a inflação brasileira nunca tenha tido um rosto, um
defensor, alguém para responder perguntas simples sobre por que os preços
sobem.
A Nova Matriz não pode
ser vista senão como uma criatura do Planalto, e seus áulicos não escondem o
intuito de antagonizar os economistas do mercado financeiro, e também todos os
outros (ressalvadas as espécies ameaçadas), e também o FMI, as agências de
risco, os especuladores em geral e, de lambuja, os conselhos do ex-presidente
Lula, que conhece os economistas alternativos de outros carnavais.
É muito perigosa a ideia de uma política econômica,
ainda mais uma Nova Matriz, cujo proprietário é o Palácio
É muito perigosa a
ideia de uma política econômica, ainda mais uma Nova Matriz, cujo proprietário
é o Palácio. Os riscos envolvidos são os costumeiramente discutidos no debate
sobre independência do Banco Central. É ótimo quando o presidente pode atribuir
à Autoridade Monetária certas políticas antipáticas das quais ele gostaria de
se afastar. É péssimo quando o presidente se torna o dono das políticas,
sobretudo quando elas não funcionam, e isso vale também para a política fiscal.
Por isso mesmo, os presidentes costumam escalar simultaneamente ministros
ortodoxos e outros nem tanto para delegar responsabilidades e ônus. Quanto mais
centralização, mais a liderança se arrisca, e mais amarrada permanece a
determinado curso.
Mas a boa notícia é que
as instituições são robustas, o que limita os estragos e facilita sua reversão.
Não há maiores dificuldades para o país retornar à racionalidade
macroeconômica, normalmente identificada com o tripé: superávit primário, metas
de inflação e câmbio flutuante. Não será necessária nenhuma emenda
constitucional, nem mobilizações nacionais, apenas decisões administrativas do
presidente e das autoridades competentes. Nada remotamente comparável com o que
tínhamos em 1993.
É claro, todavia, que o
país deve ambicionar muito mais. Não vamos esquecer que o tripé era uma versão
simplificada para um trio de posturas filosóficas de maior alcance para a
economia: responsabilidade fiscal, moeda sadia e cidadania global.
Este é o grande tripé
do qual a versão mais conhecida é apenas uma simplificação tática e de fácil
execução. Há muito mais em responsabilidade fiscal que simplesmente um número
para o superávit primário, que pode ser facilmente manipulado. A
sustentabilidade fiscal e financeira do governo envolve múltiplas questões
atinentes ao equilíbrio entre obrigações do Estado, a capacidade de tributar e
o endividamento público. O governo escapa de discutir transparentemente esses
temas ao fingir que não existem problemas, e não há um pingo de dúvida que o
Estado está onerado demais, que o sistema tributário precisa ser reformado e
que contribuintes e consumidores estão insatisfeitos. É preciso retomar essas
agendas.
A ideia de moeda sadia
transcende a meta de inflação, pois o papel do Banco Central vai bem além das
decisões sobre taxas de juros: inclui o Estado e o custo do crédito, a solidez
do sistema bancário e a atuação de bancos públicos. Tampouco as relações do
Brasil com o resto do mundo são definidas unicamente pela política cambial que,
como já deve ter ficado claro, não tapa buracos nas estradas nem resolve as
mazelas da competitividade nacional. As políticas industrial e de comércio
exterior, assim como a diplomacia econômica, interagem com a regulamentação e
atuação do Banco Central no mercado de câmbio a fim de definir os modos de inserção
do Brasil no mundo globalizado. Infelizmente, retrocedemos na direção de ideias
velhas sobre autossuficiência e nos afastamos das oportunidades oferecidas pela
economia global.
Esse tripé ampliado
traz consigo, naturalmente, muitas agendas positivas que permanecem engavetadas
há muitos anos. Já faz mais de uma década sem reformas e sem imaginação, e a
colocação do país nas comparações internacionais de competitividade e de
qualidade do ambiente de negócios permanece em níveis sofríveis. Em vez de enfrentar
os problemas, as autoridades desprezam essas métricas e se afastam do debate
sobre a qualidade da gestão pública e sobre a meritocracia em geral.
Como esperar que o
crescimento brasileiro fosse se acelerar sem nenhum esforço de reforma, e com
uma administração macroeconômica incapaz de executar nem a versão pequena do
tripé?
Fonte: O Globo,
27/04/2014
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