quarta-feira, 22 de junho de 2016

SUS ASSALTADO: A investigação do estranho “surto” de São José dos Campos

Capítulo 2

A investigação do estranho “surto” de São José dos Campos

Esse roteiro nonsense poderia ter consumido cerca de R$ 40 milhões sem que as autoridades percebessem o disparate. O que despertou desconfiança foi o grande número de laudos assinados pelo mesmo médico: o cardiologista José Eduardo Guimarães. Se a doença rara acomete uma pessoa a cada 1 milhão, como um único profissional teria alcançado a proeza de localizar 19 portadores em São José dos Campos, uma cidade de apenas 680 mil habitantes?

As coisas começaram a fazer sentido quando os investigadores descobriram a relação de Guimarães com o representante comercial James Ramos de Siqueira. O perfil dele na rede social Linkedln sugere um profissional experiente na área de criação de demanda para medicamentos de alto custo, com passagem por três empresas farmacêuticas. Como gerente de vendas da Aegerion, Siqueira era responsável pela divulgação do Juxtapid no interior de São Paulo. Os pacientes entrevistados por ÉPOCA contaram como foram abordados por ele dentro do consultório de Guimarães.

A dona de casa Aparecida de Fátima Souza, de 55 anos, se trata com o mesmo cardiologista há mais de dez anos. Numa consulta de rotina, percebeu que Siqueira puxava conversa com os pacientes na recepção. Ela e a filha, a técnica de enfermagem Fernanda de Oliveira Souza, de 27 anos, têm colesterol alto. Para controlá-lo, sempre tomaram sinvastatina. Os índices oscilam. Em alguns exames de sangue, eles aparecem dentro da normalidade. Em outros, na faixa considerada muito elevada (índice maior ou igual a 190 mg/dL). Em nenhum dos exames mostrados por Aparecida a ÉPOCA os níveis ultrapassam os 600 mg/dL (um dos sintomas da hipercolesterolemia familiar homozigótica). 
Como milhões de outros brasileiros, Aparecida precisa tomar remédios contra o colesterol porque tem vários fatores de risco para doença cardiovascular. Sofreu um infarto aos 45 anos, que exigiu a colocação de duas pontes de safena e uma mamária. Outras duas angioplastias foram necessárias para instalar seis stents. É diabética e hipertensa. Ainda assim, não aparenta sofrer dos graves sintomas da doença rara. Nem ela nem a filha foram orientadas a fazer o exame genético que poderia confirmar o diagnóstico. A abordagem feita pelo propagandista Siqueira foi direta. Segundo Aparecida, ele perguntou se elas tinham interesse de preencher um cadastro para receber de graça um novo remédio contra o colesterol. No mesmo dia, o médico perguntou se elas gostariam de experimentar o Juxtapid. Ambas aceitaram.
Guimarães preencheu um relatório médico idêntico no qual afirma que elas eram portadoras de distúrbio genético raro que ameaçava a vida. Ressalta que a lomitapida seria a única droga capaz de controlar o colesterol. Na recepção, o propagandista Siqueira registrou os dados pessoais dos documentos das pacientes e os resultados dos exames num laptop e pediu que elas assinassem um documento. Ambas afirmam não ter recebido uma cópia. “O médico disse que ia passar os resultados dos nossos exames para o propagandista para comprovar que tínhamos colesterol alto há muito tempo”, diz Fernanda. “Em nenhum momento eles nos explicaram que estávamos processando o Estado.”

Algum tempo depois, elas receberam os telefonemas da Andora, a associação de pacientes do Paraná. Exatamente como aconteceu com o comerciante Reis. O Juxtapid começou a ser entregue pela farmácia da Secretaria Estadual de Saúde, em Taubaté. O fornecimento era irregular. Às vezes chegavam as caixinhas de Fernanda, mas não as da mãe. 
Certa vez, o advogado designado pela Andora marcou um encontro com Aparecida em Taubaté para exigir o fornecimento do produto. Incomodadas com a confusão e sem notar os benefícios do Juxtapid, elas desistiram de tomar o remédio. Mãe e filha contam que só perceberam onde haviam se metido quando foram chamadas à delegacia. “Fomos enganadas”, diz Aparecida. “Envolver a gente numa coisa horrorosa, sem consentimento, é muita falta de respeito.” Aparecida não perdeu a confiança no médico. Continua a se tratar com ele. Diz que Guimarães sempre foi dedicado e atencioso. “Acho que ele foi vítima como nós.”
A maior vítima foi o SUS. Aparecida e Fernanda retiraram o remédio durante quatro meses. Com uma única família, o Estado gastou R$ 686 mil. Nenhuma delas percebeu ganhos de saúde. Por sorte, não sofreram graves efeitos colaterais, como alguns dos outros pacientes que tomaram lomitapida. “Houve relatos de náuseas, dores de cabeça e problemas hepáticos. Um dos pacientes sofreu paralisia temporária de um dos braços”, diz o delegado Fernando Bardi. O remédio pode causar acúmulo de gordura no fígado. O risco de cirrose e insuficiência hepática é elevado demais para que o Juxtapid seja visto como uma opção segura para qualquer paciente em luta contra o colesterol alto. A história da droga é prova disso.
 
Desenvolvida nos anos 1990 por químicos da gigante Bristol-Myers Squibb, a lomitapida passou por estudos clínicos em 1997. A expectativa de que pudesse se tornar um blockbuster como outros redutores de colesterol caiu por terra quando os testes apontaram efeitos colaterais inaceitáveis. A solução foi destiná-la ao tratamento de um público restrito: os portadores da severa hipercolesterolemia familiar homozigótica. Em 2006, a droga foi licenciada pela Aegerion para uso somente nesses casos. Atualmente, a empresa dispõe de apenas dois produtos.    
O cardiologista Marcelo Bertolami, do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, analisou cerca de 40 casos de pacientes que exigiram o Juxtapid na Justiça. Avaliou pessoalmente 11 desses pacientes e estudou as informações registradas nos prontuários médicos apreendidos pela polícia nos consultórios investigados. Concluiu que apenas dois pacientes eram portadores da doença rara. “Não chegamos a fazer exames genéticos”, diz Bertolami. “Basta olhar para reconhecer uma doença como essa. É um desastre, algo grave, raro e de evolução muito ruim.” Felizmente, segundo ele, os pacientes que receberam o medicamento não chegaram a tomá-lo ou o usaram por pouco tempo. 
Uma das hipóteses levantadas pela Polícia Civil é que a empresa estivesse observando os efeitos da droga em pacientes sem a doença genética rara. O objetivo seria analisar se o remédio poderia ter outras indicações, além do uso para o qual foi aprovado nos Estados Unidos – o chamado off label.

Em seu site, a Aegerion afirma que a segurança e a efetividade do Juxtapid não foram estabelecidas em pacientes que têm colesterol alto provocado por outras causas – e não pela doença genética rara. No balanço financeiro publicado no primeiro quadrimestre de 2016, a empresa informa aos investidores que “a aceitação do produto fora dos Estados Unidos, inclusive no Brasil, pode ser menor do que a prevista”.
REVISTA ÉPOCA

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