ao final de 2010, Luis Bértola e José Antonio Ocampo lançaram uma nova obra que promete tornar-se uma das principais referências sobre a história econômica da América Latina: Desenvolvimento, Vicissitudes e Desigualdade: Uma História Econômica da América Latina desde a Independência. Este livro junta-se aos de Victor Bulmer-Thomas e Rosemary Thorp como as melhores introduções à história econômica da América Latina disponíveis em um único volume.
O novo livro de Bértola e Ocampo apresenta uma síntese do
desenvolvimento econômico da América Latina, desde as independências das
novas nações no início do século XIX até os dias de hoje. Uma das
tarefas mais difíceis em uma obra geral deste tipo é equilibrar uma
análise do conjunto do que se chama convencionalmente de América Latina –
marcada por uma enorme heterogeneidade étnica, cultural, econômica e
institucional – com as histórias dos países que a compõem. O livro de
Bértola e Ocampo é um dos mais bem-sucedidos nesse aspecto, com um
tratamento detalhado das economias individuais que qualificam e ilustram
os diferentes caminhos e resultados da história econômica dos países
latino-americanos.
Chama a atenção no livro a riqueza dos dados macroeconômicos,
apresentados sempre em uma perspectiva comparativa e articulada aos
grandes eventos internacionais. Além de bases de dados da Cepal e de
outros autores, Bértola e Ocampo compilam e utilizam estimativas
próprias de vários indicadores comparativos que dão uma contribuição que
já por si garante um lugar especial ao livro na historiografia
econômica da América Latina.
A riqueza dos dados não ofusca o que é o objetivo principal dos
autores: apresentar uma síntese que contemple os aspectos institucionais
e históricos dos países latino-americanos de forma integrada à análise
quantitativa. O conhecimento demonstrado pelos autores das realidades
dos diferentes países é um dos pontos altos do livro. A maioria dos
leitores chegará ao final do livro com um substancial conhecimento extra
das histórias que constituem a América Latina.
Outro destaque do livro é que sua análise se estende praticamente até
o final da década de 2010, com um balanço inédito e inovador do
desenvolvimento econômico das últimas três décadas na América Latina.
Bértola e Ocampo conseguem abordar esse período com uma perspectiva de
longo prazo que salienta continuidades e rupturas com o passado, sem
cair no que é talvez o mais grave vício dos estudos que se concentram em
períodos recentes: a desconexão com a história, com as tendências de
longo prazo, com as dimensões internacionais dos fenômenos que engolfam
vários países simultaneamente, embora com respostas e resultados
distintos.
Para os leitores brasileiros, esse último aspecto talvez seja um dos
mais relevantes, dada a tendência arraigada de vermos a experiência
histórica brasileira como algo praticamente único e desvinculado tanto
do restante da América Latina quanto do conjunto da economia e da
sociedade internacionais. O leitor terminará o livro de Bértola e Ocampo
percebendo o quanto esse viés é limitante e equivocado.
Duas ótimas notícias adicionais para os leitores brasileiros: o livro
foi publicado simultaneamente em espanhol e português; e mais
importante, a versão integral está disponível para download no site da Secretaria Geral Ibero-Americana - veja aqui. Uma excelente opção para os cursos que tratam da história econômica da América Latina, na graduação e pós-graduação.
Como todo livro de abrangência tão ampla, porém, há possíveis
ressalvas quanto às interpretações dos autores. Mas deixo os comentários
a respeito para um próximo post.
[Eis as ressalvas apresentadas por Renato Perim...]
Interpretações sobre a América Latina
Em um post anterior,[acima] comentei sobre o novo livro de Luis Bértola e José Antonio Ocampo, Desenvolvimento, Vicissitudes e Desigualdade: Uma História Econômica da América Latina desde a Independência.
Como uma obra notável que é, os autores apresentam novas interpretações
sobre diferentes aspectos do desenvolvimento econômico na América
Latina, suas conquistas e debilidades.
Uma das minhas maiores discordâncias quanto à interpretação geral
apresentada no livro refere-se à posição adotada quanto aos trabalhos de
Engerman & Sokoloff (1997; 2002).
Bértola e Ocampo minimizam as contribuições desses autores e, de fato,
até simplificam exageradamente a sua interpretação, associando-os a um
“determinismo estrito dos recursos sobre os aspectos tecnológicos e
institucionais” (Bértola e Ocampo, 2010,
p. 21). Aqui, aparentemente, determinismo é visto no sentido de fatos
fixos do passado determinando de maneira irreversível os resultados do
futuro, não havendo lugar para agência humana e mudanças nas
instituições.
Essa opinião não faz justiça aos trabalhos seminais de Engerman &
Sokoloff, em que recursos, poder político das elites, instituições e
políticas públicas interagem de maneira bem mais complicada do que a
suposição de um determinismo estrito dos fatores. Para Engerman &
Sokoloff, o peso do controle dos recursos produtivos sobre estruturas
políticas e institucionais não parece implicar irreversibilidade ou
impossibilidade de mudança institucional. A questão central levantada
por Engerman & Sokoloff é outra: como a elevada desigualdade na
distribuição da riqueza, do capital humano e do poder político
influencia a evolução das instituições (educacionais, por exemplo) e,
então, o desenvolvimento econômico de longo prazo.
Bértola e Ocampo são muito mais favoráveis à interpretação de
Coatsworth sobre as causas do atraso econômico latino-americano
(Coatsworth, 1988 e 2008).
A opção de Bértola e Ocampo pela interpretação de Coatsworth me parece,
contudo, pouco promissora. Para Coatsworth as características coloniais
ressaltadas por Engerman & Sokoloff são pouco relevantes para o
desenvolvimento de longo prazo na América Latina. A América Latina teria
fracassado em incorporar as inovações da Revolução Industrial devido à
fragilidade de suas elites locais frente à metrópole. A região
necessitava de governos fortes para promover a indústria moderna, “não
menos desigualdade e exploração, mas talvez muito mais de ambos,
incluindo subsídios às empresas e esforços para manter os salários
baixos” (Coatsworth, 2008, p. 560). Então, com o crescimento da economia
exportadora a partir de meados do século XIX, houve aumento da
desigualdade econômica, fortalecimento das elites agrárias e manutenção
de baixos salários devido à imigração e migração interna, mesmo com
renovado crescimento econômico. Sob tais condições, a América Latina
finalmente viveria seu take off, tardio mas substancial.
Dois grandes problemas da interpretação de Coatsworth são a sua
frágil base empírica e sua perspectiva, vamos dizer, “estatista”. Que a
desigualdade não é incompatível com o crescimento econômico é algo
óbvio, como a história do Brasil demonstra recorrentemente. Algo
bastante diferente é assumir que a elevada desigualdade seja uma
pré-condição para o desenvolvimento econômico. Não há evidências no
Brasil, por exemplo, de que a concentração da riqueza na economia
açucareira do nordeste fosse significativamente menor do que na economia
cafeeira, que liderou a expansão econômica a partir da segunda metade
do século XIX. Da mesma forma, buscando fundamentar sua hipótese de
fragilidade das elites locais, Coatsworth fala em “rebeliões e
resistência endêmicas” mesmo nas fazendas escravistas do Brasil (e
Caribe) pré-independência, o que não parece ser verdadeiro no caso
brasileiro pelo menos.
O outro grande problema da abordagem de Coatsworth é que ela desloca o
foco das origens do atraso econômico para as instituições estatais
(“capacidades estatais”) e as políticas públicas orientadas para a
industrialização (subsídios, contenção de salários), em uma perspectiva
reminiscente da teoria cepalina e da teoria da dependência.
Com isso, algumas das linhas mais profícuas de investigação abertas
pelos trabalhos de Engerman & Sokoloff são deixadas de lado:
primeiro, entender como o controle dos recursos produtivos está
relacionado com o poder de elites, instituições políticas e políticas
públicas que afetam o conjunto da sociedade; segundo, de que maneira
políticas públicas tradicionalmente negligenciadas pela literatura
econômica (acesso à terra, educação primária, patentes) podem ter
impactos significativos sobre a capacidade de crescimento econômico
sustentado de uma sociedade; terceiro, em que medida e porque
características institucionais do passado podem ser persistentes e
afetar o desenvolvimento econômico de longo prazo.
Essas questões não são simples e requerem uma substancial ampliação
de horizontes em relação ao tratado tradicionalmente pela literatura
sobre o desenvolvimento ou o atraso econômico na América Latina.
O livro de Bértola e Ocampo é uma importante contribuição à
historiografia econômica da América Latina, mas ao priorizar as
“capacidades estatais” e “políticas industrializantes”, minha impressão é
que os autores se distanciam de questões e respostas cruciais para
explicar o atraso econômico latino-americano.
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