O que Marx escreveria no quinto volume de O Capital?
Se estivesse vivo, Marx prestaria mais atenção no que acontece hoje fora da
fábrica, ou seja, nas relações monetárias e fiscais que transferem renda direta
dos mais pobres para os muito ricos, seja no boom, seja especialmente nos
momentos de crise econômica, pela via da disputa do orçamento público. Por que
os conservadores europeus, chefiados por Merkel, advogam políticas monetárias
expansivas e políticas fiscais restritivas?
O artigo é de J. Carlos de
Assis (*)
Custou a Marx quatro volumes de “O Capital” para demonstrar que o
fundamento da acumulação de lucro pelo capitalista estava na apropriação da mais
valia, isto é, na apropriação da diferença entre o valor de reprodução da força
de trabalho e o valor dos bens que ela produz. Isso mudou. Se estivesse vivo,
Marx prestaria mais atenção no que acontece hoje fora da fábrica, ou seja, nas
relações monetárias e fiscais que transferem renda direta dos mais pobres para
os muito ricos, seja no boom, seja especialmente nos momentos de crise
econômica, pela via da disputa do orçamento público.
Na fábrica, exceto
situações extremas como a da China e de outros países asiáticos onde temos ainda
um processo de acumulação primitiva baseado na super-exploração do trabalho, o
valor da força de trabalho vai-se aproximando cada vez mais do valor que ela
produz em face da concorrência de preços inter-capitalista. As grandes
corporações não negam generosos aumentos salariais. Apenas os transferem,
coordenadamente, aos preços. É na disputa da mais-valia extra fábrica – ou seja,
no orçamento público - que se concentram os grandes ganhos empresariais. Isso,
na crise, fica explícito.
Por que os conservadores europeus, chefiados
por Merkel, advogam políticas monetárias expansivas e políticas fiscais
restritivas? Pensem bem. Quem toma dinheiro emprestado em bancos, a taxas
reduzidíssimas, senão os que têm garantias patrimoniais para oferecer? E quem
tem garantias, exceto os ricos? Assim, nas crises financeiras como a atual, a
política monetária expansiva, em nome da facilitação do crédito, não passa de um
artifício para facilitar a apropriação direta da mais-valia social pelos mais
ricos – primeiro, os bancos que têm acesso às taxas básicas, depois, a sua
clientela que se beneficia de taxas igualmente baixas.
Na prática e na
teoria, conhece-se a falácia da política monetária expansiva para combater a
recessão desde, pelo menos, a Grande Depressão dos anos 30. Ali se descobriu o
fenômeno do “empoçamento” do dinheiro nos caixas dos bancos e a metáfora que o
descreve: política monetária é como uma pedra amarrada por barbante; você pode
puxar a pedra com o barbante, produzindo recessão, mas não pode empurrá-la para
produzir uma retomada. É que o dinheiro fica empoçado no caixa dos bancos e das
grandes empresas justamente por falta de demanda agregada que justifique novos
investimentos.
E que dizer da política fiscal? Em tese, a política fiscal
pode ser um campo de transferência de renda dos mais ricos para os mais pobres.
Em países de perfil social-democrata, como os europeus, isso produziu uma
civilização avançada, com o estado atuando no sentido de transferir renda para o
financiamento de serviços públicos universais como saúde, educação e
previdência, essenciais para o bem estar coletivo e a estabilidade social e
política. Nesse caso, a mais-valia social produzida no nível das empresas,
conjuntamente por trabalhadores e capitalistas, é em parte apropriada pelo
Estado e transferida na forma de benefícios aos menos privilegiados.
A
pressão conservadora em favor de políticas fiscais restritivas nada mais é que
uma reação aos processos de transferência de renda de perfil social
progressista. Entretanto, assim como a política monetária tem sido um fracasso –
na debilitada economia americana as grandes corporações têm parados nos seus
caixas, portanto sem investir, mais de 2 trilhões de dólares -, a política
fiscal tem sido um tiro no pé: a Grécia, a que se impôs um programa de
austeridade fiscal draconiano, registrou uma contração no PIB de 6,5% no
primeiro trimestre, e uma contração da receita pública de 25%. Isto é, só por
esses números vê-se que o plano de recuperação acertado com a troika – FMI, BCE
e Comissão Europeia – já foi para o espaço porque a dívida pública em relação ao
PIB cresceu, em lugar de diminuir, embora não tenha havido um euro de gasto
público deficitário, mas sim cortes profundos no orçamento.
O quinto
livro de “O Capital” revelaria que o fator responsável pela apropriação parcial
da mais-valia social pelos países social-democratas reais foram as fortes
pressões políticas resultantes do lento processo de expansão dos direitos de
cidadania e da democracia no mundo. Por isso, para reverter a tendência, é
necessário quebrar a espinha da democracia. Na Itália e na Grécia puseram
tecnocratas no poder. Na Alemanha e na Inglaterra, políticos ignorantes de
economia defendem o jogo da direita, mesmo com o risco de um futuro desastre
eleitoral. Isso nos anima. Se a democracia sobreviver na Europa, uma nova
direção política, da qual Hollande, da França, é um precursor, poderá retirar o
continente das cordas com uma nova combinação de políticas monetária e fiscal,
restaurando a combalida social-democracia europeia.
P.S. Não se
impressione com os 100 bilhões europeus para o resgate dos bancos espanhóis. Nem
um único euro será usado para financiar investimentos. Ou seja, mesmo que a taxa
de juros baixe para a Espanha, isso em nada contribuirá para uma real
recuperação da economia e queda do desemprego de 25%.
(*)
Economista, professor de Economia Internacional da UEPB, co-autor, junto com
Francisco Antonio Doria, do recém-lançado “O Universo Neoliberal em Desencanto”,
pela Civilização Brasileira. Esta coluna é publicada também no site Rumos do
Brasil e, às terças, no jornal carioca Monitor Mercantil.
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