Introdução ao Capital de Karl Marx - parte I
Alex Callinicos
"O Capital" foi a suprema conquista de Marx, o
centro da obra de sua vida. Seu objeto era, como Marx colocou no Prefácio ao
Volume I, "revelar a lei econômica do movimento da sociedade
moderna". Pensadores econômicos anteriores haviam captado um ou outro
aspecto do funcionamento do capitalismo. Marx procurou entendê-lo como um todo.
Coerente com o método de análise e concepção de história, Marx analisou o
capitalismo não como o fim da história, como a forma de sociedade
correspondente à natureza humana, mas como um modo de produção historicamente
transitório cujas contradições internas o levariam à queda.
Pode ser
útil para leitores não familiarizados com a "sombria ciência" da
economia (como a chamava Thomas Carlyle) esboçar brevemente o objeto deste
capítulo. Ele começa com a pedra angular de "O Capital", a teoria do
valor-trabalho, segundo a qual as mercadorias - produtos vendidos no mercado -
são trocadas em proporção ao tempo de trabalho socialmente necessário para a
sua produção. Nós veremos como essa teoria sublinha a abordagem de Marx da
exploração capitalista, pois é a mais-valia criada pelos trabalhadores a fonte
dos lucros sobre os quais o capitalismo, enquanto um sistema econômico, se apoia.
A competição entre capitais - sejam capitalistas individuais, companhias ou
mesmo nações - cada um tentando abocanhar a maior porção da mais-valia, leva à
formação de uma taxa geral de lucro e, portanto, como veremos, a uma
modificação na teoria do valor-trabalho. A concorrência também dá lugar a uma
tendência para uma queda na taxa de lucro, que é a causa fundamental das crises
que afligem regularmente o sistema capitalista.
Trabalho e Valor
A base de
cada sociedade humana é o processo de trabalho, seres humanos cooperando entre
si para fazer uso das forças da natureza e, portanto, para satisfazer suas
necessidades. O produto do trabalho deve, antes de tudo, responder a algumas
necessidades humanas. Deve, em outras palavras, ser útil. Marx chama-o valor
de uso. Seu valor se assenta primeiro e principalmente em ser útil para
alguém.
A
necessidade satisfeita por um valor de uso não precisa ser uma necessidade
física. Um livro é um valor de uso, porque pessoas necessitam ler. Igualmente,
as necessidades que os valores de uso satisfazem podem ser para alcançar
propósitos vis. O fuzil de um assassino ou o cassetete de um policial é um
valor de uso tanto quanto uma lata de ervilhas ou o bisturi de um cirurgião.
Sob o
capitalismo, todavia, os produtos do trabalho tomam a forma de mercadorias.
Uma mercadoria, como assinala Adam Smith, não tem simplesmente um valor de uso.
Mercadorias são feitas, não para serem consumidas diretamente, mas para serem
vendidas no mercado. São produzidas para serem trocadas. Desse modo cada
mercadoria tem um valor de troca, "a relação quantitativa, a
proporção na qual valores de uso de um tipo são trocados por valores de uso de
um outro tipo". (O Capital vol. .1, doravante C1 ) Assim, o valor de troca
de uma camisa poderá ser uma centena de lata de ervilhas.
Valores de
uso e valores de troca são muito diferentes uns dos outros. Para tomar um
exemplo de Adam Smith, o ar é algo de um valor de uso quase infinito aos seres
humanos, já que sem ele nós morreríamos, mas que não possui um valor de troca.
Os diamantes, por outro lado, são de muito pouca utilidade, mas tem um valor de
troca muito elevado.
Mais
ainda, um valor de uso tem que satisfazer algumas necessidades humanas específicas.
Se você tem fome, um livro não poderá satisfazê-lo. Em contraste, o valor de
troca de uma mercadoria é simplesmente o montante pelo qual será trocado por
outras mercadorias. Os valores de troca refletem mais o que as mercadorias têm
em comum entre si, do que suas qualidades específicas. Um pão pode ser trocado
por um abridor de latas, seja diretamente ou por meio de dinheiro, mesmo que
suas utilidades sejam muito diferentes. O que é isso que eles têm em comum, que
permite a ocorrência dessa troca?
A resposta
de Marx é que todas as mercadorias tem um valor, do qual o valor de
troca é simplesmente o seu reflexo. Esse valor representa o custo de produção
de uma mercadoria à sociedade. Pelo fato de que a força de trabalho é a força
motriz da produção, esse custo só pode ser medido pela quantidade de trabalho
que foi devotada à mercadoria.
Mas por
trabalho Marx não se refere ao tipo particular de trabalho envolvido em,
digamos, assar um pão ou manufaturar um abridor de latas. Esse trabalho real,
concreto, como disse Marx, é variado e complexo demais para nos fornecer a
medida de valor que necessitamos. Para encontrar essa medida nós devemos
abstrair o trabalho de sua forma concreta. Marx escreve: "Portanto, um
valor de uso ou um bem possui valor, apenas, porque nele está objetivado ou
materializado trabalho humano abstrato". (C1, p 47)
Assim, o
trabalho tem um "caráter dual":
"Todo
trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho do homem no sentido
fisiológico, e nessa qualidade de trabalho humano igual ou trabalho humano
abstrato gera o valor da mercadoria. Todo trabalho é, por outro lado, dispêndio
de força de trabalho do homem sob forma especificamente adequada a um fim, e
nessa qualidade de trabalho humano concreto útil produz valores de uso."
(Cl, p. 53)
Marx
descreveu esse caráter dual do trabalho como um dos "melhores
pontos em meu livro" (Correspondência Seleta). Foi aqui que a teoria de
Marx separou-se das teorias de Ricardo e dos economistas políticos. Marx
criticou Ricardo por se concentrar quase que exclusivamente na tentativa de achar
uma fórmula precisa para determinar o valor de troca das mercadorias. Eles
queriam, é claro, encontrar modos de prever os preços de mercado.
"O
erro de Ricardo é que ele está interessado somente na magnitude do valor...
O que Ricardo não investiga é a forma específica na qual o trabalho se
manifesta como o elemento comum nas mercadorias", escreveu Marx. (Teorias
da Mais-Valia (doravante TMV), tomo III)
Marx não
estava interessado especificamente em preços de mercado. Sua meta era entender
o capitalismo como uma forma de sociedade historicamente específica, descobrir
o que faz o capitalismo diferente das formas anteriores de sociedade, e que
contradições levariam à sua futura transformação. Marx não queria saber em que
medida o trabalho formava o valor de troca das mercadorias, mas em que forma
o trabalho realizava essa função e porque sob o capitalismo a produção
era de mercadorias para o mercado e não de produtos para uso direto como nas
sociedades anteriores.
O caráter
dual do trabalho é crucial para responder esta questão, porque o trabalho é uma
atividade social e cooperativa. Isto é verdade não apenas no que toca a tipos
particulares de trabalho, mas para a sociedade como um todo. O trabalho de cada
indivíduo ou grupo de indivíduos é trabalho social no sentido de que ele
contribui para as necessidades da sociedade. Essas necessidades exigem todo o
tipo de diferentes produtos - não só vários tipos de alimentos, mas também
vestuário, meios de transporte, instrumentos necessários na produção e assim
por diante. Isto quer dizer que é necessário que diferentes tipos de trabalho
útil sejam levados a cabo. Se cada um produzisse somente um tipo de produto
então logo a sociedade entraria em colapso.
Cada
sociedade, portanto, necessita de alguns meios para distribuir o trabalho
social entre diferentes atividades produtivas. "Essa necessidade da
distribuição de trabalho social em proporções definidas não pode
possivelmente ser suprimida por uma forma particular de produção
social", escreve Marx (Selected Correspondence, doravante SC). Mas há uma
diferença fundamental entre o capitalismo e outros modos de produção. O
capitalismo não possui mecanismos através dos quais a sociedade pode decidir
coletivamente o quanto de seu trabalho será direcionado a tarefas particulares.
Para
entender porque é assim, devemos olhar para os modos de produção
pré-capitalistas, onde o objetivo da atividade econômica era primeiramente a
produção de valores de uso, e cada comunidade podia satisfazer todas ou a maior
parte de suas necessidades a partir do trabalho de seus membros. Assim, na
"indústria
rural patriarcal de uma família camponesa que produz para seu próprio uso
cereais, gado, fio, linho, peças de roupa, etc.(...) diferenças de sexo e de
idade e as condições naturais do trabalho que mudam com as estações do ano
regulam sua distribuição dentro da família e o tempo de trabalho dos membros
individuais da família" (C1, 74)
A
distribuição do trabalho é regulada coletivamente mesmo em sociedades
pré-capitalistas onde existem exploração e classes. Assim, no feudalismo,
"o
trabalho e os produtos (...) entram na engrenagem social como serviços e
pagamentos in natura. (...) Portanto, como quer que se julguem as
máscaras que os homens ao se defrontarem aqui, vestem, as relações sociais
entre as pessoas em seus trabalhos aparecem em qualquer caso como suas próprias
relações pessoais, e não são disfarçadas em relações sociais das coisas, dos
produtos de trabalho" (C1, 74)
No caso do
escravismo e do feudalismo, ambos modos de produção baseados na exploração de
classe, a massa da produção está voltada inteiramente para satisfazer as
necessidades dos produtores e da classe exploradora. A questão principal não é o
que é produzido, mas sim a divisão do produto social entre exploradores e
explorados.
No capitalismo
as coisas são muito diferentes. O desenvolvimento da divisão de trabalho
significa que a produção em cada local de trabalho é agora altamente
especializada e separada dos outros locais de trabalho: cada produtor não pode
satisfazer suas necessidades a partir de sua própria produção. Um trabalhador
numa fábrica de abridores de latas não pode comer abridores de latas. Para
viver ele deve vendê-los a outros. Os produtores são, portanto,
interdependentes em dois sentidos: eles precisam cada um dos produtos dos
outros, mas eles também precisam uns dos outros como compradores de seus
produtos para que eles possam obter o dinheiro com o qual compram aquilo que
precisam.
Este
sistema Marx chama de produção generalizada de mercadoria. Os produtores
estão ligados entre si somente pelo intercâmbio de seus produtos:
"Objetos
de uso se tornam mercadorias apenas por serem produtos de trabalhos privados,
exercidos independentemente uns dos outros. O complexo desses trabalhos
privados forma o trabalho social total. Como os produtores somente entram em
contato social mediante a troca de seus produtos de trabalho, as
características especificamente sociais de seus trabalhos privados só aparecem
dentro dessa troca. Em outras palavras, os trabalhos privados só atuam, de
fato, como membros do trabalho social total por meio das relações que a troca
estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio dos mesmos, entre os
produtores".(C1,71)
Até aqui,
o trabalho social concreto era diretamente trabalho social. Onde a produção
era para o uso, para satisfazer algumas necessidades específicas, seu papel
social era óbvio. Onde a produção é destinada para a troca, contudo, não há uma
conexão necessária entre o trabalho útil realizado por um produtor particular e
as necessidades da sociedade. Só podemos descobrir, por exemplo, se os produtos
de uma fábrica específica atendem algumas necessidades sociais apenas depois
de eles terem sido colocados à venda no mercado. Se ninguém quiser comprar
esses bens, então o trabalho que os produziu não era trabalho social.
Há um
segundo aspecto no qual há uma diferença entre o trabalho social e privado no
capitalismo. Fabricantes de um mesmo produto irão competir pelo mesmo
mercado. Seu relativo sucesso dependerá em como possam vender seus produtos por
um menor preço. Isso implica em aumentar a produtividade do trabalho:
"Genericamente, quanto maior a força produtiva do trabalho, tanto menor o
tempo de trabalho exigido na produção de um artigo, tanto menor a massa de
trabalho nele cristalizado, tanto menor o seu valor", escreve Marx (C1,
49).
A pressão
da concorrência força os produtores a adotarem métodos de produção similares
aos dos seus rivais, ou se vêem forçados a rebaixarem seus preços para poderem
competir. Consequentemente o valor das mercadorias é determinado não pela
quantidade total de trabalho usada para produzi-las, mas sim pelo tempo de
trabalho socialmente necessário, isto é, o tempo de trabalho
"requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas condições dadas de
produção socialmente normais, e com o grau social médio de habilidade e de
intensidade de trabalho" (C1, 48). Um produtor ineficiente que usa mais do
que o trabalho socialmente necessário para produzir algo achará que o preço que
ele obtém pela mercadoria não compensará o seu trabalho extra. Somente o
trabalho socialmente necessário é trabalho social.
Trabalho
social abstrato é assim não apenas um conceito, algo que existe somente nas
nossas mentes. Ele domina a vida das pessoas. A menos que os produtores sejam
capazes de alcançar as "condições normais de produção" eles se verão
forçados a sair fora do negócio. Mas isso não é tudo. Nós vimos que o trabalho
privado útil somente se torna trabalho social uma vez que seu produto tenha
sido vendido. Mas para ocorrer a troca deve haver algum modo de aferir o quanto
de trabalho socialmente necessário está contido em cada mercadoria. A sociedade
não pode fazer isso coletivamente, porque o capitalismo é um sistema no qual os
produtores relacionam-se uns com os outros somente através de seus produtos.
A solução
é que uma mercadoria assuma o papel de equivalente universal, em relação ao
qual os valores de todas as outras mercadorias possam ser mensuradas. Quando
uma mercadoria particular fixa-se no papel de equivalente universal, ela se
torna dinheiro. E, escreve Marx, "a representação da mercadoria enquanto
dinheiro implica (...) que as diferentes magnitudes de valores-mercadoria (...)
estão todas expressas em uma forma na qual existem como a corporificação de trabalho
social" (TMV).
Assim o
capitalismo é um sistema econômico no qual os produtores individuais não sabem
de antemão se os seus produtos atenderão uma necessidade social. Eles podem
descobrir somente tentando vender esses produtos como mercadorias no mercado. A
concorrência entre produtores que procuram tomar mercados vendendo a preços
mais baratos reduz os seus diferentes trabalhos a uma medida, trabalho social
abstrato corporificado em dinheiro. Onde a oferta de uma mercadoria excede a
sua demanda, seu preço cairá, e os produtores irão mudar para outras atividades
econômicas mais lucrativas. É desse modo, e somente indiretamente, que o
trabalho social é distribuído entre diferentes ramos de produção.
A análise
marxista do valor está, portanto, direcionada ao que faz do capitalismo uma
forma de produção social única. O seu foco é "a real estrutura interna das
relações burguesas de produção". Seu propósito é mostrar que "como
valores, as mercadorias são magnitudes sociais, (...) relações entre
homens na sua atividade produtiva (...) Onde o trabalho é comunal as relações
entre homens em sua produção social não se manifestam como "valores"
de coisas"(TMV).
Assim que O
Capital foi publicado, economistas burgueses objetaram que a abordagem do
valor feita por Marx no começo do volume I não prova que as mercadorias são
realmente trocadas em proporção ao tempo de trabalho socialmente necessário
exigido para produzi-las. Eles têm continuado com essa objeção até os dias de
hoje. Marx comentou acerca de um desses críticos:
"O
desafortunado camarada não vê que, mesmo se não houvesse um capítulo sobre
"valor" em meu livro a análise das reais relações que eu dou
conteriam a prova e a demonstração da real relação-valor (...)
A ciência
consiste precisamente em demonstrar de que maneira a lei do valor se afirma.
Assim se alguém quiser "explicar" logo de início todos os fenômenos
que aparentemente contradizem a lei, ele deve proporcionar a ciência antes da
ciência." (SC)
Todo O
Capital é uma prova da teoria do valor-trabalho. Marx considerava que o
método científico correto era o de "ascender do abstrato ao
concreto". Ele começa por estabelecer a teoria do valor-trabalho na forma
bastante abstrata, tal como a consideramos até agora. Mas este é somente o
ponto de partida de sua análise. Ele avança passo a passo para mostrar como o
comportamento complexo e freqüentemente caótico da economia capitalista pode
ser entendido a partir da teoria do valor-trabalho, e somente a partir dela.
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