A “Primavera” brasileira e
seu contexto sócio-político
Os protestos iniciados em junho de 2013, nomeados na imprensa
internacional de “primavera brasileira”, sua generalização nos centros urbanos
e regiões metropolitanas da sociedade brasileira, sua forma muitas vezes
violenta e insurrecional, indicam uma crise profunda do sistema político
brasileiro. Esta crise tem por base o esgotamento do projeto neoliberal no
Brasil.
O projeto neoliberal alcançou hegemonia na sociedade brasileira
após o breve interregno de Collor, durante os governos Itamar Franco e Fernando
Henrique Cardoso, a partir da aplicação dos programas do consenso de Washington
que impulsionaram a abertura comercial e financeira e a sobrevalorização
cambial em troca da renegociação da dívida externa dos anos 1980: endividamento
público, privatização, a desindustrialização, precarização do mercado de
trabalho e alienação da soberania nacional.
A crise mundial, com epicentro na Ásia em 1998, propiciou fuga
de capitais da América Latina cortando o financiamento externo destas
experiências, deixando exposta a vulnerabilidade financeira dos Estados que
adotaram essas formulações e o seu alto custo social, manifesto na alienação do
patrimônio público e da soberania nacional, no enriquecimento privado, na
corrupção e alto nível de endividamento estatal a serviço de oligarquias
financeiras, na perda de direitos sociais e trabalhistas, nos altos níveis de
desemprego e na desindustrialização.
O rechaço aos grupos políticos que dirigiram estes processos na
América Latina foi profundo e deu lugar à ascensão das esquerdas,
principalmente na América do Sul, que se inicia com a eleição de Hugo Chávez em
1998. Estas se dividiram entre uma esquerda nacionalista e integracionista, que
se afirma com Hugo Chávez e Nicolás Maduro na Venezuela, Evo Morales na
Bolívia, Rafael Corrêa no Equador, Nestor e Cristina Kirchner na Argentina, ou
em projetos centristas e moderados com os de Lula e Dilma Rousseff no Brasil,
Michele Bachelet no Chile, Tabaré Vasquez e José Mujica no Uruguai e Fernando
Lugo no Paraguai.
Destinando o núcleo duro da política econômica para o capital
financeiro, mantendo intocado o monopólio dos meios de comunicação, cooptando
lideranças dos movimentos sociais organizados, comprometendo-se com as
principais igrejas brasileiras e fazendo política de renda mínima para os
segmentos mais pobres da população brasileira, as lideranças petistas
imaginavam ter blindado a hegemonia de seu projeto político. Articulava-se uma
base de apoio muito superior ao da direita brasileira, que desmoralizada pela
crise do neoliberalismo a partir de 1999 e sem vínculos com os movimentos
sociais, não tinha como enfrentá-lo. A preferência pelo PSDB, DEM e seus
aliados nos segmentos da alta burguesia e nas franjas superiores dos setores
médios não era suficiente para oferecer uma alternativa a este projeto.
Estabeleceu-se entre os governos Lula e Dilma e o grande capital, de quem as
organizações Globo são o principal porta-voz, uma espécie de guerra fria, onde
a colaboração sobrepunha-se aos conflitos, limitando sua intensidade.
Entretanto, este projeto
apresenta várias limitações: ao pretender transformar permanentemente uma
política emergencial, como a de renda mínima, na principal política de combate
à pobreza, criou-se uma mobilidade no interior da pobreza sem que se provessem
os mecanismos institucionais de sua erradicação ou da eliminação da
vulnerabilidade social e econômica das amplas maiorias, incluindo frações dos
segmentos médios. Esta vulnerabilidade tem seu fundamento nos baixos salários,
alto nível de informalidade do mercado de trabalho, má qualidade dos serviços
públicos e altos custos da habitação[1]. O resultado foi
o aumento da pressão pela garantia dos direitos sociais estabelecidos na
constituição de 1988 e sua ampliação para incluir transporte, junto a itens
como saúde, educação, moradia, previdência e lazer.
Estas pressões se evidenciaram nos protestos de junho, que
levaram milhões de pessoas às ruas, cuja base de massas foi composta
principalmente por estudantes e trabalhadores que vivem em famílias com renda
total de até três salários mínimos. Tais pressões surgem de fora do grande
consenso nacional liderado pelo PT, ou da competição exercida por seu rival, a
direita político-partidária e suas organizações mediáticas e empresariais de
apoio. Representam uma explosão social sem mediação no sistema
político-institucional e colocam em questão a legitimidade da democracia
representativa. Apesar da presença de partidos de esquerda (PSOL, PSTU e PCB)
junto com Movimento Passe Livre na organização dos protestos pela revogação do
aumento das tarifas de transportes, estopim de um conjunto de manifestações,
estes não possuem representação institucional significativa nos parlamentos ou
poder executivo, não se constituindo em partidos de massa.
Esta ausência de mediação torna estes movimentos sociais tão
explosivos quanto vulneráveis na medida em que não possuem uma estratégia
cumulativa de médio e longo prazo. Diversas estratégias lançam-se sobre eles:
a) a socialista, que busca captar o sentido profundo dos protestos e refundar o
Estado, desprivatizando-o, dirigindo-o prioritariamente para a garantia dos direitos
sociais, para a defesa da soberania nacional e substituindo o déficit de
legitimidade da democracia representativa pela introdução de mecanismos de
democracia direta; b) a do capitalismo monopolista de Estado, que busca
refundar o pacto neoliberal aumentando o grau de controle dos monopólios sobre
o Estado. Para isso reivindica-se por intermédio das grandes empresas dos meios
de comunicação, como a expressão mais organizada da sociedade civil e porta voz
da brasilidade, e dirige sua ofensiva principalmente contra esquerda
neoliberal, mas também ao sistema político partidário em seu conjunto. Sua
opção preferencial, ainda que não a exclusiva, é por lideranças políticas
pessoais, sem representação partidária expressiva, como Marina Silva ou Joaquim
Barbosa, superando-se o déficit de coordenação política em um presidencialismo
de coalizão com a articulação destas lideranças ao monopólio midiático, que
lhes garantiria governabilidade pautando a ação do parlamento e do judiciário;
c) a fascista, que busca extrapolar os níveis de violência nas ruas criando um
ambiente caótico que justifique um golpe de Estado, que retire a “esquerda” da
direção do Estado.
O neoliberalismo social: os
governos petistas e suas políticas públicas
A principal característica das políticas públicas dos governos
Lula e Dilma petistas foi a manutenção da financeirização da economia. Quase
metade do orçamento público continuou comprometido com pagamentos de juros e
amortizações da dívida. Nunca se pagou tanto em valores absolutos de amortizações
e juros da dívida. Se a relação dívida Bruta/PIB caiu ligeiramente de 76% a
64,4%¨do PIB, entre o fim do Governo Cardoso e o fim do Governo Lula, elevou-se
novamente a 67,4% em dezembro de 2012, durante o governo Dilma. As taxas de
juros permaneceram acima do crescimento do PIB e o peso representado pelos
juros estabilizou-se entre 5% e 6% do PIB desde 2008 - depois de
aproximar-se de dois dígitos em 2003 -, tornando inúteis os esforços de
contenção em gastos com pessoal para a obtenção de superávit primário e redução
significativa da dívida pública. Os gastos com pessoal da União permaneceram em
níveis extremamente comprimidos. Se o governo FHC os reduziu de 56% para 37% da
receita liquida da União e de 5,8% para 5,5% do PIB, os governos Lula e Dilma
os mantiveram entre 30-35% da receita líquida da União e abaixo dos 5% do PIB.
O esforço para restringir os gastos com o funcionalismo público e a previdência
social levou o governo a estabelecer uma reforma da previdência que retirou
direitos dos servidores públicos, impondo contribuição previdenciária aos
inativos, limite de idade, teto previdenciário e um fundo complementar. O
compromisso com o superávit primário fez ainda com que o Governo Dilma
enfrentasse com extrema inflexibilidade uma onda de greves no funcionalismo
público em 2012, recorrendo a cortes de salários dos grevistas e à ameaça de
proposição de uma nova lei de greve para os servidores públicos.
Desenvolveu-se nos governos Lula e Dilma a estrutura jurídica
para um amplo conjunto de licitações do Pré-Sal e de serviços públicos
(hidrelétricas, ferrovias, rodovias, portos, aeroportos, estádios) que alienam
o patrimônio público e violam a soberania nacional, em particular no Pré-Sal.
Se os royalties chegam a 85% produção na Venezuela e a 50% da mesma na Bolivia,
Estados muito mais frágeis em sua capacidade de enfrentamento das pressões do
capital internacional, no Brasil alcançam apenas 15%. Constitui-se um Fundo
Social do Pré-Sal formado por royalties e bônus de assinatura cuja principal finalidade
é a estabilização financeira da economia. Os investimentos sociais resumem-se à
metade da rentabilidade de um Fundo Social que é 15% dos royalties somados aos
bônus de assinatura. O discurso oficial de destinação de 100% dos royalties do
Pré-sal à educação revela-se fraudulento e contrasta com a realidade medíocre
onde se planeja investir 28 bilhões em 10 anos, o que representaria aos dias de
hoje um dispêndio anual de 0,06% do PIB, sem qualquer conexão com a demanda
estabelecida pelos movimentos estudantis de investimento de 10% do PIB na
educação.
Os constrangimentos impostos pelos juros e amortizações limitam
os investimentos públicos, impedindo que o Estado brasileiro cumpra plenamente
a sua função estabelecida pela constituição de 1988 de prover direitos sociais,
entre eles a educação, saúde e habitação. 75% dos brasileiros não tem acesso
aos planos de saúde privados dependendo da qualidade da saúde pública e 75% das
matriculas no ensino superior estão nas universidades privadas, de pior qualidade,
financiadas pelo Estado via Prouni, em detrimento da expansão da universidade
pública. O Prouni oferece bolsas integrais para estudantes com renda familiar
de até 1 salário mínimo ou de 50% para aqueles com até 3 salários mínimos,
sendo insuficiente para romper plenamente as barreiras econômicas de acesso. No
caso específico dos transportes, motivação inicial dos protestos, três fatores
incidem negativamente sobre seu uso pelas famílias de trabalhadores: o preço, a
péssima qualidade e o alto tempo de deslocamento ao trabalho, em função da
carência da expansão da infraestrutura urbana e da remoção de milhares de
famílias para periferia, que reflete um processo de elitização das cidades e de
ofensiva imobiliária a pretexto dos megaeventos. Apenas 40% da população
economicamente ativa e 24% da população em idade ativa têm o vale-transporte –
que limita o preço pago pelo trabalhador a 6% do seu salário -, considerando-se
que 77,5% da população recebe até 3 salários mínimos. Os preços dos transportes
públicos têm se elevado acima das taxas de inflação nas principais cidades
brasileiras impulsionados pela privatização de serviços públicos como metrô,
trens e barcas. No caso específico da cidade de São Paulo, desde 1994 os preços
de metrô e ônibus se elevaram em 430% e 540% contra 332% de inflação.
A orientação das políticas sociais foi para a focalização e o
combate à extrema pobreza. Basearam-se na expansão das políticas de renda
mínima – em particular o programa bolsa-família –
e no aumento do salário mínimo. Quais seus resultados? Beneficiaram em especial
o segmento que percebe renda familiar de até ¼ de salário mínimo per capita.
Segundo o Comunicado do IPEA nº 59, entre 1998-2008 – tomando-se como
referência o salário mínimo de 2008 -, houve uma redução significativa das
famílias que recebem até ¼ de salário mínimo que passaram de 20% a 10,4% da
população. Entretanto, os segmentos de até ½ salário mínimo e até 1 salário
mínimo se estabilizaram, mantendo no total 54,1% das famílias com renda per
capita abaixo de 1 salário mínimo per capita, patamar inferior ao salário
mínimo necessário por família calculado pelo DIEESE, equivalente neste ano a
cerca de 1,2 salários mínimos per capita. Em 2012, o governo gastou
aproximadamente 0,46% do PIB com o programa Bolsa-família, que atingiu 50 milhões de
pessoas, e 0,2% do mesmo com o Minha casa minha vida, mas isto representou
muito menos do que gastou com juros, quase 11 vezes os R$ 20 bilhões do Bolsa-família e aproximadamente 5% do PIB.
Em resumo, as políticas dos
governos petistas não foram direcionadas ao combate à pobreza em geral. Esta
permaneceu afetando a maioria da população brasileira, que se manteve em
condições de superexploração do trabalho. Tal situação torna-se ainda mais
grave em função das pressões sociais que se originam do aumento do valor da
força de trabalho. Os níveis de escolaridade aumentaram significativamente no
Brasil desde os anos 1990[2], levando a novas
exigências de consumo, acesso a serviços, direitos sociais e padrões
civilizatórios, em particular por parte da juventude. Entre as demandas em
processo de afirmação está a de democratização e maior participação na vida
social e política do país. Com a difusão da revolução cientifica-técnica e das
tecnologias de comunicação surge uma nova geração e um novo perfil da força de
trabalho, que se articula à socialização do conhecimento, da informação e ao
desenvolvimento da subjetividade.
O uso de velhas formas parlamentares liberais de hegemonia, o
abandono da reforma política e de um projeto de democratização dos meios de
comunicação, bem como a aproximação de pautas culturais conservadoras não
permitiram uma renovação do ambiente institucional, conectando-o às novas
demandas e ao imaginário social em formação. O financiamento privado de
campanhas se multiplicou nos últimos dez anos, encarecendo o custo de campanha,
corrompendo e acelerando a privatização da vida pública. Em 2010, 75% das campanhas
mais caras foram eleitas para o Congresso Nacional, acentuando o vínculo da
representação parlamentar com o poder econômico e as oligarquias. A presença
crescente dos jovens na internet não encontrou por parte do governo nenhuma
iniciativa para democratizar os meios de comunicação de massa e impulsionar a
criação de TVs comunitárias ou públicas não estatais; as gigantescas passeatas
de homossexuais não encontraram nenhuma iniciativa para lhes garantir plena
cidadania civil, e tampouco os movimentos feministas conquistaram o direito ao
aborto. A aliança com o agronegócio, pilar dos saldos comerciais de uma pauta
exportadora cada vez mais intensiva em produtos primários, tem levado ao
crescimento de conflitos sociais envolvendo os povos indígenas, particularmente
relacionados à lentidão na demarcação dos seus territórios. A revisão da lei de
anistia fracassou pela opção do governo em percorrer os caminhos institucionais
do liberalismo brasileiro – que a barrou no STF – descartando o respaldo e a
mobilizações populares via plebiscito. É digno de nota que Lula e Dilma
indicaram até aqui 12 ministros do STF, restando apenas 2 de outros mandatos
presidenciais. Entre os indicados esteve o ministro Cesar Peluzzo, que foi
orientando de doutorado de um destacado representante da extrema-direita
brasileira, Alfredo Buzaid, Ministro da Justiça no Governo Médici, durante o
exercício de seu mandato.
As políticas de renda mínima não afetaram significativamente a
concentração de renda na sociedade brasileira: em 2002, os 10% mais ricos se
apropriavam de 47% da renda e em 2009, este número havia caído para 41%. Os 40%
mais pobres, por sua vez, haviam expandido ligeiramente sua parcela de 10,7%
para 13,2%. Entretanto, no que tange à concentração de riqueza há vários
indícios que apontam o seu aumento, entre eles: as generosas concessões ao
capital nas licitações públicas de ferrovias, rodovias, portos, hidrelétricas,
aeroportos, estádios e lotes do Pré-sal; o boom imobiliário nas grandes cidades
que elevou drasticamente os preços habitacionais; e as remoção de moradias
populares associada à elitização das cidades a partir dos megaeventos.
Desde 2008, contra uma inflação de 34%, o preço dos alugueis e do metro
quadrado residencial se elevaram em 130% e 212%, no Rio de Janeiro, e 87% e
171% em São Paulo. Apenas no Rio de Janeiro, calcula-se que 70 mil pessoas
foram removidas desde 2008, em função de obras para megaeventos ou da alegação
de que viviam em áreas de risco, lançando-se mão do programa minha
casa, minha vida como moeda de
troca da remoção para a periferia urbana da cidade.
Esta política limitadamente distributiva beneficiou-se de uma
conjuntura internacional favorável que contribuiu para reduzir a pobreza em
toda a América Latina. Após manter-se desde os anos 1980 no mesmo patamar, as
taxas de pobreza caíram em toda a região de 43,9% para 31% da população, entre
2003-2010. Entretanto, essa conjuntura é marcada por fatores instáveis como o
aumento dos preços das commodities e, especificamente no caso brasileiro, por
uma enxurrada de capitais estrangeiros, a partir de 2007, que elevou o piso das
remessas de lucros e pagamentos de serviços fatoriais da economia brasileira.
Os preços das commodities parecem infletir para baixo na década de 2010, em
função dos problemas estruturais da economia estadunidense e europeia, que
afetam negativamente o crescimento da economia mundial pressionando
negativamente nossa balança comercial. A economia brasileira parece retornar a
sua vulnerabilidade externa, gerando fortes déficits em conta corrente e
baseando o equilíbrio do balanço de pagamentos num fator cíclico como os
ingressos de capitais estrangeiros, cuja estabilidade raramente atinge mais de
8 anos. Estes podem reverter o movimento de entrada quando declinarem suas
taxas de lucro, expondo nossas economias a ataques especulativos, debilitando
nossas reservas e provocando um ajuste recessivo, caso seja mantido o núcleo
duro da política econômica, ancorado em políticas monetárias e fiscais
restritivas, abertura financeira e taxas de câmbio flutuantes.
Preservação de fundamentos de uma política econômica neoliberal,
limitada distribuição de renda, extrapolação das possibilidades de uma política
de renda mínima, manutenção de níveis expressivos de pobreza, concentração da
propriedade, violação da soberania nacional, elitização e privatização das
cidades em função dos megaeventos, desmobilização dos movimentos sociais,
utilização dos velhos métodos parlamentares, esvaziamento ideológico do sistema
partidário, preservação dos monopólios dos meios de comunicação, manutenção da
legislação conservadora sobre união civil, aborto, incapacidade de revogar a
lei de anistia, comprometimento com o agronegócio e morosidade na demarcação
das terras indígenas. Estes são equívocos e omissões que desconectaram a
liderança política petista e o sistema político que dirige das grandes maiorias
representadas pela população brasileira e que constituem o pano de fundo das
explosões populares.
O impasse político
pós-primavera: o que vem depois ?
Como vimos, os protestos atingem de frente o consenso político
neoliberal no Brasil e a legitimidade da democracia representativa, em sua
versão liberal e centrista. O caráter oligárquico e desigual que esta assume e
sua incapacidade de prover direitos sociais entram em contradição com as
promessas de um Estado republicano, baseado no mandato popular e no monopólio
da competência técnica pelo aparato técnico-burocrático e elites dirigentes dos
três poderes. Embora os protestos tendam a refluir parecem apontar para um
esvaziamento progressivo do centro político, podendo retomar ciclicamente sua
ofensiva no contexto dos megaeventos e principalmente de uma possível crise do
balanço de pagamentos brasileiro nos próximos anos.
Neste contexto, abrem-se janelas de oportunidade para os
extremos, isto é, esquerda e direita, projetarem-se e disputarem protagonismo.
Uma alternativa à esquerda para atual crise política exigirá que esta tenha a
capacidade de combinar mobilizações populares com respostas institucionais que
promovam a democracia participativa e priorizem as políticas sociais.
Entretanto, importantes dificuldades se apresentam para isto.
Uma possibilidade seria a de um giro do PT à esquerda.
Entretanto, o compromisso do Governo Dilma com o capital financeiro e as
frações oligopólicas do capitalismo dependente lhe impede de apoiar-se nas
mobilizações populares e orientá-las para os grandes temas nacionais que
permitam romper estes vínculos. Não é por outra razão que dos 5 pactos
propostos pelo governo aos movimentos sociais, o primeiro foi sobre
estabilidade econômica. Sua intenção é disciplinar e sujeitar à politica
econômica movimentos sociais fora do controle governamental. A tentativa de
renovar o sistema político incorporando a democracia participativa tem sido
bloqueada ao percorrer puramente caminhos institucionais. A proposta de uma
assembleia constituinte exclusiva apontou na direção correta, sobretudo se
fosse composta por representantes da sociedade civil e dos movimentos sociais e
não por deputados e senadores, mas ao não ser articulada à mobilização popular
pereceu em menos de 24 horas, sofrendo a reação negativa da base aliada e da
oposição no Congresso. A proposta de Plebiscito que a substitui passa também
por profundo desgaste no Congresso, arriscando-se em caso de aprovação a
efetivar-se apenas para as eleições de 2018. Se tem o mérito de colocar o tema
do financiamento público de campanha, o faz de forma aventureira, pois este não
está amadurecido na consciência popular e o tempo de debates será curto. Se
visto como limite superior da reforma política, o plebiscito a restringe
muitíssimo não permitindo o controle popular sobre os mandatos no Legislativo,
Executivo e Judiciário.
De outro lado, os partidos à
esquerda do PT não parecem em condição de liderar os movimentos de massa,
possuindo baixíssima expressão nos sistemas representativos nacional, estaduais
e municipais. A possibilidade de uma resposta efetiva da esquerda passaria por
uma mudança de orientação do PT nesta direção, ou de uma fratura no interior do
partido que permitisse a composição de uma frente de esquerdas que
estabelecesse aliança prioritária com as classes trabalhadoras, movimentos
sociais e as grandes maiorias. Os caminhos para tal mudança são difíceis e
complexos, mas não impossíveis, ainda que possam suscitar regressões
importantes. O similar mais próximo é o caso do peronismo argentino, guardadas
importantes diferenças[3]. A adesão do
peronismo por meio do menemismo à ordem neoliberal esvaziou o cenário de
alternativas políticas na Argentina, criando um cenário de protestos e
movimentos insurrecionais, cuja maior expressão foi o “que se vayan todos!”.
Este cenário apenas foi superado com o ressurgimento de um peronismo popular
através do kirchnerismo após a derrota de Duhalde em 1999 o interregno
presidencial da UCR e FREPASO com Fernando de la Rua. A questão é: como fazer
esta transição no caso brasileiro sem a mediação de uma derrota política
importante? Isto dependerá da força dos movimentos sociais e do grau de
autonomia do partido diante do governo para pressioná-lo na direção dos
movimentos de massa.
A direita neoliberal parece contar com mais recursos para
aproveitar a conjuntura imediata. Mas seus quadros políticos e seus
partidos tradicionais estão bastante desmoralizados e a alternativa mais
plausível é a de um candidato que se lance fora deste circuito tradicional,
apoiado pelo sistema midiático. Todavia é duvidoso que tenha força suficiente
para triunfar em 2014, até porque o PT tem ultima instância a possibilidade de
lançar mão da candidatura Lula, relativamente preservado da crise institucional
ao não ocupar função política direta na conjuntura atual. Uma eventual vitória
da direita nas eleições de 2014 e o retorno a formas mais radicais de
neoliberalismo tenderiam a agravar a polarização e as tensões sócio-políticas
na sociedade brasileira, reorganizando o equilíbrio de forças partidárias, e
produziria impactos fortemente regressivos na América do Sul, contribuindo para
o isolamento dos governos populares da região.
A direita fascista que saiu às
ruas não tem maiores perspectivas no contexto brasileiro imediato. Não há
ambiente institucional para um golpe de Estado como em algum momento se tentou
acreditar. O governo petista tem ampla presença no Parlamento – o que deverá se
manter em caso de reeleição – que está sob ofensiva dos protestos sociais,
tornando muito improvável qualquer tentativa de impeachment nestas condições.
Os militares tampouco tem força política para atuarem de forma independente.
Não o fizeram em 1964[4] e as possibilidades de fazerem
com êxito são mínimas com o desgaste histórico que acumularam e sem apoios
sociais mais amplos. Não há nenhuma razão para que as burguesias brasileiras
até aqui beneficiadas pelos governos petistas apoiassem um movimento deste
tipo. Todavia caso estejam pressionadas mais adiante, podem buscar aproximação
com os grupos fascistas e golpistas. Neste sentido cumpre estudar estes
movimentos e evidenciando sua conexão com as milícias, o aparato policial,
militar, organizações partidárias e empresariais.
Notas
[1] Em 2011, segundo a PNAD, 64,5%
dos trabalhadores brasileiros recebiam até 2 salários mínimos, isto é, US$
660,00, a informalidade havia caído substancialmente desde 2002, quando atingiu
43,2% da PEA, mas permanecia alcançando 33% da mesma.
[2] Os anos de escolaridade da
população com mais de 25 anos se elevam de 4,8 anos para 7,2 anos entre
1990-2012. Nas zonas urbanas, no mesmo período, a escolaridade salta de 6,6
anos para 9,2 anos, entre jovens de 15-24 anos. Ver Panorama Social da CEPAL
2012.
[3] Entre as diferenças está o
fato de o menemismo significar um projeto neoliberal muito mais radical que os
governos Lula e Dilma vêm sustentando e o fato de que a Argentina mergulhou
numa crise econômica cuja profundidade o Brasil está bastante longe. Mesmo
assim a comparação nos parece pertinente.
[4] Estes, mesmo em 1964,
necessitaram de que uma aparência de legalidade para atuar: a declaração
fraudulenta de vacância da presidência da republica por parte do Congresso
Nacional.
***
Sobre as manifestações de junho,
leia no Blog da Boitempo:
Problemas no Paraíso,
por Slavoj
Žižek
A criação do mundo
revisitada, de Izaías
Almada
A direita nos protestos,
por Urariano
Mota
A revolta do
precariado, por Giovanni
Alves
A guerra dos panos e Técnicas para a fabricação
de um novo engodo, quando o antigo pifa,
por Silvia
Viana
Esquerda e direita no espectro do pacto de
silêncio e Motivos econômicos para o transporte público
gratuito,
por João
Alexandre Peschanski
***
O livro mais recente de Carlos
Eduardo Martins, Globalização, dependência e neoliberalismo na
América Latina (Boitempo, 2011) está à venda em versão
eletrônica (ebook), pela metade do preço do
livro impresso, na Gato Sabido.
***
Carlos Eduardo Martins é doutor em Sociologia pela Universidade de
São Paulo (USP), professor adjunto e chefe do Departamento de Ciência Política
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do Laboratório de
Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ), coordenador do Grupo de
Integração e União Sul-Americana do Conselho Latino-Americano de Ciências
Sociais (Clacso) e pesquisador da Cátedra e Rede Unesco/UNU de Economia Global
e Desenvolvimento Sustentável (Reggen). É autor deGlobalização, dependência e neoliberalismo na
América Latina (2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea
da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção
em 2007) e co-organizador de A América Latina e os desafios da globalização (2009), ambos publicados pela Boitempo. É
colaborador do Blog
da Boitempo quinzenalmente, às segundas.
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