Avolumam-se os sinais de que, no futuro, o
superávit primário do setor público será inferior à meta de 4,25% do PIB
adotada nos últimos anos. Embora neste espaço eu tenha me manifestado em defesa
da preservação da meta - ou mesmo, no passado, da sua elevação - seria
equivocado argumentar que, no cenário que se vislumbra de redução dos juros e
dentro de certos limites, tal redução colocaria o equilíbrio macroeconômico em
risco.
A rigor, é possível mostrar que, se os
juros caírem, nos próximos anos será possível reduzir o resultado primário e,
mesmo assim diminuir as NFSP, pelo menor peso dos juros. Dada a citada premissa, porém, é conveniente
refletir acerca de como proceder a essa flexibilização.
O ponto que iremos defender aqui é que o
país deveria aproveitar a oportunidade para ajustar a contabilidade fiscal ao
padrão observado em outros países. Isso implica: 1) adotar como referência da relação dívida
pública/PIB o PIB nominal corrente e não o "PIB valorizado a preços do fim
de período"; 2) desconsiderar, na
estatística da dívida, a base monetária; e
3) trabalhar com o conceito de "Governo Geral", em substituição
ao do "setor público" no cálculo do resultado fiscal oficial, o que
implica retirar da estatística as estatais não dependentes.
No caso do primeiro ponto, para uma
inflação de 4% e uma dívida de 50% do PIB, a mudança implica deixar de
"engordar" o denominador da relação dívida/PIB em torno de 2% -
diferença entre os preços médios do ano e os de dezembro - o que significa
acrescentar 1% do PIB à relação entre a dívida e o PIB. Se, em 2007, ela
poderia cair 2%, com a mudança cairia apenas 1% do PIB.
Não há problemas quanto a isso. A alteração
pode ser adotada em 2007. Quando o
Brasil começou a apurar as contas públicas, no começo dos anos 80, estatais
eram responsáveis por mais da metade da dívida pública A segunda proposta é
simples. Quando se fala em "dívida" pensa-se em títulos que rendem
juros e a base monetária é uma forma de financiamento a custo zero. A não ser
pelo papel que a variável desempenha para financiar o desequilíbrio fiscal, não
há justificativa para que ela seja parte da dívida pública.
O Banco Central (BC) continuaria a publicar
o saldo da variável nas estatísticas monetárias, portanto não haveria perda de
informação. Como, por conta disso, a dívida pública cairia em torno de 5% do
PIB, o BC poderia anunciar a exclusão da variável com antecedência de dois
anos, dando tempo a todos para se acostumar com o novo padrão. O anúncio
poderia ser feito em 2007, para ter vigência em 2009.
A terceira proposta merece maiores
explicações. O objetivo de medir o déficit público é avaliar o efeito da
política fiscal sobre a demanda agregada. Com o perfil que têm hoje as nossas
contas públicas, o fato é que, se o preço do petróleo cai no exterior, a
Petrobras continua comprando parte do petróleo fora do país mas não repassa o
menor preço ao consumidor, seu lucro e seu superávit primário aumentam.
Agora vamos pensar: o que aconteceria com a
demanda agregada se a Petrobras fosse privada? Exatamente a mesma coisa. E,
entretanto, a forma em que o efeito é captado nas estatísticas fiscais pelo
fato de a empresa ser estatal é diferente. Hoje, na prática, o gasto com
servidores aumenta, mas o maior lucro da Petrobras pode compensar o maior gasto
público. Há algo de irrealista nisso.
Quando o Brasil começou a apurar as contas públicas com a contabilidade
que temos até hoje, no começo dos anos 80, as estatais eram responsáveis por
mais de metade da dívida pública.
Não considerá-las como parte das
estatísticas fiscais corresponderia a "colocar a sujeira para baixo do
tapete". Vinte e cinco anos depois, a situação das estatais é muito
diferente e não mais se justifica manter as mesmas normas contábeis de
1981/1982. A proposta é que o BC anuncie
em 2007 que, entre 2008 e 2009, irá retirar gradualmente nas "Notas para a
Imprensa" o resultado das estatais não dependentes.
Não haveria perda de transparência, uma vez
que seria um passo similar ao que o país deu há 10 anos, quando o resultado
fiscal oficial passou a ser o nominal e não mais o operacional, dado este que,
porém, continuou sendo apurado e disponibilizado através da Internet. O BC
apenas excluiria a variável do resultado oficial. A instituição teria o ano de 2007 para
desagregar o resultado das empresas entre "dependentes" e
"não-dependentes". As primeiras teriam a sua estatística divulgada em
forma desagregada como parte do resultado dos governos regionais e do Tesouro,
como é feito hoje no apêndice da Nota do Tesouro sobre o resultado fiscal com o
ajuste metodológico de Itaipu.
Por sua vez, as não dependentes - empresas
como Petrobras, Eletrobrás, Sabesp, Cemig e algumas outras que preenchessem
certos requisitos de boa governança - seriam excluídas do resultado
oficial. Pela proposta, as empresas
estaduais e municipais deixariam de ser parte do resultado fiscal em 2008 e as
federais em 2009.
No momento em que as federais fossem
excluídas da estatística, como elas são credoras líquidas, o fato tenderia a
pressionar a dívida. Entretanto, como isso se daria junto com a retirada da
base monetária, a dívida pública líquida poderia continuar a cair. O superávit primário, estabelecido em 4,25%
do PIB, cairia para algo em torno de 3,5% do PIB daqui a um par de anos, o que,
de qualquer forma, continuaria sendo consistente com uma trajetória cadente da
relação dívida pública/PIB, desde que o superávit primário do governo central e
dos Estados e municípios se conserve em valores próximos aos atuais e as
despesas do Projeto Piloto de Investimentos (PPI) não sejam excluídas do
superávit.
Além disso, a medida inibiria a pressão por
mais gastos, hoje baseados no argumento de que o superávit primário de 4,25% do
PIB seria "excessivo". Estas
são idéias que constituem apenas uma agenda para discussão. O BC, porém,
deveria contemplar a conveniência de adotar pelo menos parte dessa agenda. Isso
representaria uma espécie de "graduação" da nossa contabilidade
fiscal, que se aproximaria dessa forma do resultado dos demais países.
Fonte
GIAMBIAGI, Fabio. A contabilidade fiscal e
o superávit primário. Valor Econômico, São
Paulo, 03 jan. 2007. Disponível em: <http://www.crcpi.com.br/noticias.php?id=136>.
Nenhum comentário:
Postar um comentário