terça-feira, 24 de junho de 2014

PROBLEMÁTICA URBANA BRASILEIRA: UM BALANÇO DE 60 ANOS

Por Humberto Miranda
O crescimento da população urbana no Brasil tomado em dois períodos históricos longos, de trinta anos cada, com o primeiro ocorrendo no auge desenvolvimentismo, de 1950 a 1980 e o segundo, no auge do neoliberalismo, de 1980 a 2010, mostra a importância do nexo urbano-industrial no primeiro e a perda deste no segundo.
O processo de metropolização brasileiro inicia-se em 1950 e passa de uma urbanização suportável a problemática nos anos de 1960 para uma urbanização acelerada nos anos de 1970 e caótica nos 1980. O primeiro período foi marcado pelo impulso dado à concentração urbana e da renda, devido ao avanço da industrialização pesada e à intensificação do êxodo rural. Já o segundo período foi marcado pela fragmentação urbana e enfraquecimento do planejamento estatal, devido à abertura econômica e ao baixo crescimento. Entre os dois períodos, o incremento líquido observado na população total do país foi pequeno, de 0,6% ou cerca de 400 mil pessoas.
Já o incremento líquido na população urbana do país foi relativamente alto, de 24,8% ou 15,7 milhões de pessoas entre os dois períodos. Foi neste último período (1980-2010), portanto, que o incremento líquido de população urbana ganhou intensidade, sem se ter criado as condições necessárias para suportá-lo ou autosustentá-lo adequadamente.
O Brasil completou a transição rural-urbana no primeiro período (1950-1980), passando de 03 para 18 cidades com mais de 500 mil habitantes, produzindo uma urbanização concentrada.
No segundo, o crescimento das cidades entre 100 e 500 mil habitantes foi expressivo, passando de 124 (1980) para 245 (2010), sendo que as cidades com mais de 500 mil habitantes passaram de 18 para 38. Em termos líquidos — ou seja, considerando o saldo entre os dois períodos —, estamos falando de um conjunto de 37 cidades a mais, cada uma com 423,8 mil habitantes em média. O país responde, assim, por um sistema urbano concentrado em termos metropolitanos e disperso em termos espaciais, onde figura também um conjunto mais expressivo de cidades médias.
Esta configuração tornou-se complexa já que muitas cidades médias se vincularam fortemente a atividades dos setores agrominerais e agroindustriais e tem trajetórias particulares em cada contexto regional específico.
Completando esse quadro, podemos dizer que a hierarquia urbana consolidou-se plenamente após 1980, com o fim do regime militar e com o aumento da participação política da população, culminando na promulgação da Constituição Federal de 1988. Estes fatos colaboraram para estimular a criação (emancipação) de municípios de mais baixa posição na hierarquia (até 100 mil habitantes) na rede urbana nacional, bem como a o aumento das cidades médias (entre 100 e 500 mil e entre 500 e 1 milhão de habitantes), passando de 133 para 270 (203%!) como se pode constatar no quadro a seguir.
Observa-se, de forma bem geral, que o nível hierárquico superior da rede urbana brasileira, no que tange aos municípios com mais de um milhão de habitantes, chega a concentrar 37,8 milhões de habitantes, cerca de 20% da população total do país, em 12 cidades em 2010. Porém, o nível hierárquico inferior (até 100 mil habitantes) concentra 95% do número de municípios e 45% da população total. Como, aproximadamente, 35% da população brasileira estão concentradas em 270 municípios com mais de 100 mil e menos de um milhão de habitantes até 2010, se somarmos o nível metropolitano e o nível intermediário, veremos que 55% da população brasileira estão concentradas em 282 municípios. Adicionalmente, temos 325 municípios com população entre 50 e 100 mil habitantes ou 11,7% da população total em 2010, que são um conjunto de cidades intermediárias entre o menor nível hierárquico e as cidades médias, sendo este um conjunto de cidades menos estudado e chamado ainda genericamente de cidade média, mas, na verdade, não conhecemos bem sua hierarquia. O fato é que existem 607 municípios, de um total de 5.565 — ou, aproximadamente, 11% municípios —, que concentram 127,8 milhões de habitantes.
O quadro regional permite especificar a problemática como algo que caracteriza a urbanização subdesenvolvida, que reclama soluções próprias.
Através do gráfico 01 pode-se verificar que no segundo período houve um incremento de população urbana nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Cada região tem uma participação na distribuição dos incrementos populacionais das suas cidades que reflete a importância de sua população no conjunto do país.
A abertura externa da economia brasileira nos anos de 1990 forjou novos determinantes para o urbano, reiterando a expansão da fronteira agrícola/mineral, que não estaria voltada para atender exclusivamente aos objetivos de expansão interna do produto industrial, mas também e principalmente para atender aos imperativos do mercado mundial de commodities, com mais países consumidores (asiáticos) e com a prática de melhores níveis de preços. Nesse ínterim, os anos de 1990 e 2000 mostram, de um lado, os grandes centros urbanos se saturando (de gente e atividades) e as cidades médias crescendo vigorosamente e, de outro, novas centralidades urbanas voltando a ocorrer e pequenas cidades continuando a surgir intermitentemente nas áreas de expansão da fronteira agrícola. Em grande medida, são importantes áreas das regiões Centro-Oeste, das franjas da região Nordeste e dos fragmentos de área da região Norte que alimentam esse incremento urbano no segundo período (1980-2010). Uma urbanização que é explicada mais pela relação com diversas atividades econômicas que por suposta dicotomia campo cidade.
O caso brasileiro pode ser entendido dentro do caráter mais amplo de ocupação territorial do capital em outros países latino-americanos. Cobos (1989 e 2008) discute a relação entre o agro e a urbanização na América Latina, seu crescimento urbano anárquico e as mudanças nos processos territoriais na nova fase de acumulação do capital, mas também “os pobres resultados do neoliberalismo” neste continente após os anos de 1990, especialmente por aumentar o nível de desigualdade e heterogeneidade territorial (urbano-regional). Este pesquisador é bastante claro no que diz respeito ao desafio à nossa cultura científica e política:
“… debemos construir nuestra propia cultura científica y política para explicar nuestra realidad particular y confrontarla críticamente con la venida de fuera, del norte en particular; debemos construir las políticas territoriales para transformar nuestra realidad y resolver sus contradicciones, a partir de su explicación científica, los instrumentos disponibles, los intereses que defendemos y nuestras posiciones en el abanico político-ideológico.” (COBOS, 2010:19)
Deste ponto de vista, pode-se perceber o mesmo caráter de ocupação do espaço urbano na América Latina, em que pesem as especificidades de cada formação nacional, que trazem a mesma problemática, a do subdesenvolvimento urbano, especialmente nas análises sobre as áreas metropolitanas. Contudo, seguindo o conselho de Cobos, precisamos entender as particularidades da urbanização subdesenvolvida na maneira como ela se projeta para além das áreas metropolitanas. Afinal, são nas áreas não metropolitanas onde o espaço urbano se entrelaça mais fortemente com o espaço rural nos países latino-americanos e manifesta cabalmente as implicações das desigualdades e heterogeneidades socioespaciais.
No gráfico 02 pode-se verificar a maior intensidade do crescimento da população urbana no segundo período. Esta intensidade é medida pela razão entre o crescimento da população urbana sobre a população total, sendo que um valor acima de um significa que a população urbana cresce a taxas superiores à total.
Aqui há que se levar em conta a diversidade regional e condições socioeconômicas próprias. A intensidade da urbanização na região sudeste reflete seu padrão industrial presente no primeiro período (1950-1980). As demais seguem a dinâmica de integração econômica de seus espaços regionais acionados por políticas nacionais ou em reação à integração com o mercado externo, especialmente no segmento de produtos primários.
Salienta-se que no período 2000-2010 aprofunda-se o processo de desconcentração produtiva regional engendrado na década de 1990, embora com algumas diferenças fundamentais: a reversão do déficit comercial em superávits crescentes a partir de 2002, como consequência da desvalorização cambial de 1999; a redução lenta e contínua das taxas de juros nominais a um patamar inferior aos 26,5% de 2003; o crescimento contínuo do PIB agropecuário no período pós-desvalorização cambial (1999-2004), conforme aponta Balsadi (2008); o chamado “efeito China”, devido as suas altas e sucessivas taxas de crescimento econômico. Foram priorizadas as iniciativas de desenvolvimento local com maior inserção externa das regiões rurais, principalmente nos anos 2000, explicitando uma forte contradição entre a expansão da fronteira agropecuária e a exploração extensiva (espacialmente) e intensiva (ecologicamente) da base de recursos naturais, já que não resulta de ganhos de produtividade por hectare cultivado, mas da facilidade em manter a itinerância territorial como solução de conjunto para o crescimento da agricultura brasileira.
O geógrafo Milton Santos, no livro “A urbanização brasileira”, de 1993, já havia chamado a atenção para as diferenças entre população urbana, rural e agrícola, mostrando que a queda relativa da população rural era mais acentuada que o da população agrícola no Brasil. Santos (2009) aponta dois elementos para explicar o fenômeno, um deles é a expansão da fronteira agrícola e o outro as migrações inter-regionais.
O fenômeno não se dá de maneira homogênea, uma vez que são diferentes os graus de desenvolvimento e ocupação prévia das diversas regiões, pois estas são diferentemente alcançadas pela expansão da fronteira agrícola e pelas migrações inter-regionais.
São “cidades agrícolas” aquelas que surgem dotadas de um fato urbano próprio e sob o efeito do alcance do processo de expansão da fronteira agropecuária e das migrações entre regiões, transferindo contingentes social e culturalmente diferenciados de populações para subespaços regionais que se caracterizam como verdadeiras plataformas exportadoras de grãos ou carne bovina ou como retaguardas territoriais para realização da produção agropecuária. São cidades agrícolas no sentido de abrigarem no interior do município ou da hinterlândia modalidades de produção agropecuária, e o fato urbano se manifesta de modo uniforme, como um “implante urbano”, para favorecer a logística de escoamento dessa produção. O espaço rural do município, todavia, perde características naturais e singularidades.
Em síntese: o que parecia para muitos uma dualidade ou contraste gerado pela especificidade do processo de desenvolvimento brasileiro, crescimento das cidades e “esvaziamento” do rural, hoje pode parecer uma regularidade da forma de inserção da economia brasileira no mundo globalizado, embora esta não seja necessariamente decorrente de um “esvaziamento” do rural. O que parecia contraste torna-se complementaridade; o que era dualidade torna-se possibilidade de maior articulação rural-urbana ou perspectiva de maior integração territorial. O que estava definido como espaço residual, para além dos perímetros urbanos, hoje, o rural, parece mais “preencher” a dinâmica urbana do que ser seu pressuposto negativo, o não urbano. As regiões são mais agrícolas ou agrominerais que rurais e as regiões urbanas não prescindiram necessariamente de áreas agrícolas, especialmente no caso das cidades médias que se tornaram ainda mais importantes regionalmente.
As áreas não metropolitanas podem reproduzir ou mimetizar o processo de urbanização das áreas metropolitanas, mas o que chama atenção é o aumento da desigualdade e heterogeneidade socioespacial na urbanização periférica. Cobos (2008) tem chamado a atenção para o fato que o desenvolvimento desigual produziu, nos últimos anos na América Latina, da pequena cidade à extensa cidade-região, múltiplas formas urbanas que se combinam complexamente, com tamanhos populacionais e estruturas econômico-sociais muito distintas (COBOS, 2008: 151-152). Embora Cobos discuta esse problema ao analisar as metrópoles periféricas, aqui neste artigo tentou-se mostrar que o processo engloba também o avanço da fronteira agrícola e, por conseguinte, está presente em áreas não metropolitanas, todavia, com novas determinações: o controle do espaço pelo capital acontece de fora do território e não se vincula, como no passado, à industrialização, mas ao circuito mercantil das commodities, especialmente, após a ascensão da China.
De modo geral, considera-se que a dinâmica urbana dos espaços “inter-intra” regionais brasileiros modificou-se. Se durante muito tempo entendeu-se a urbanização como um fenômeno socioespacial derivado da dinâmica engendrada por determinações mais amplas da industrialização e de seu produto principal, a metropolização, hoje, embora a questão metropolitana seja central nos estudos do subdesenvolvimento latino-americano, outro fenômeno reclama atenção: o avanço da urbanização em áreas não metropolitanas, criando novas áreas de concentração populacional em direção às regiões centro-oeste/norte/nordeste do Brasil. Estão no centro dessa discussão os efeitos do avanço da fronteira agrícola sobre o padrão de urbanização. Do ponto de vista do subdesenvolvimento, isto significa aumento de heterogeneidades socioespaciais, reforçando o status quo agrário como um bloqueio estrutural à melhor distribuição territorial das cidades e o status quo urbano através da segregação socioespacial nas cidades.
Diante de tal complexidade, com níveis de hierarquização diferenciados por estratos de população, com problemas tipicamente metropolitanos penetrando outros níveis hierárquicos intermediários, devido ao processo físico de conurbação e de interpenetração das relações capitalistas via ampliação do circuito imobiliário e financeiro, bem como pela crescente processo de periferização nas cidades em praticamente todos os níveis hierárquicos, levando à generalização do fenômeno da segregação socioespacial, não se pode negar que o enfrentamento dos problemas socioeconômicos nacionais passa necessariamente pelo tratamento que se está dando ou que se dará à questão urbana. Mais que em qualquer outro período da economia nacional, o projeto nacional de desenvolvimento reclama a centralidade da dimensão urbana.

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