As classes perigosas
José Paulo Netto
A republicação de As classes perigosas: banditismo urbano e rural, de Alberto Passos Guimarães, atende a uma dupla demanda da inteligência crítica brasileira. A primeira, mais ou menos óbvia, é repor em circulação um livro há muito esgotado, só encontrável em bibliotecas ou alfarrabistas – e, qualifique-se, um livro da máxima relevância; a segunda é relembrar a importância contemporânea da obra de Alberto Passos Guimarães, nascido nas Alagoas, mais precisamente em Maceió, em 16 de abril de 1908, e falecido no Rio de Janeiro, cidade em que viveu por quase meio século, em 24 de dezembro de 1993 (…)
Pois bem: o livro que em boa hora a Editora UFRJ recoloca à mão do leitor exemplifica à perfeição a resistência (e, pois, a atualidade) do labor de Alberto Passos Guimarães. Escrito no ocaso da ditadura do grande capital instaurada em 1964 e publicado quando a intelectualidade acadêmica mal despertava para os fenômenos da violência urbana contemporânea, As classes perigosas permanece absolutamente relevante decorrido um quarto de século desde que viu a luz, ainda que os dados sobre os quais se apoia mostrem-se anacrônicos. A verificação elementar de Alberto Passos Guimarães continua irreprochável. Permito-me uma longa citação:
É óbvia […] a impossibilidade de eliminar-se a pobreza dentro das sociedades marcadas pelas fortes desigualdades, entre extremos de riqueza e extremos de pobreza; e, consequentemente, é de toda a evidência a impossibilidade de eliminar-se certo nível relativamente mais elevado de criminalidade dentro de tais sociedades. Mas a situação atual nas áreas metropolitanas – e já nas áreas urbanas menores – de nosso País está sendo estigmatizada por acontecimentos de tal frequência que excedem os limites comuns a todas as capitais dos países capitalistas, desenvolvidos ou não desenvolvidos, e cujo surpreendente e crescente grau de violência envolve uma cada vez mais numerosa parcela da população, vítima das mais diversas formas de atentados aos seus bens e à sua vida. Pouco a pouco, a violência das classes criminosas se estende ao conjunto da população; parte desta procura reagir, também por meio da violência, aos atentados de que é vítima, tentando fazer justiça, por suas próprias mãos, recorrendo a práticas igualmente condenáveis e igualmente criminosas, como a dos linchamentos. À violência dos criminosos se junta a violência das próprias vítimas e, a essas duas, uma terceira se vem juntar: a violência dos órgãos policiais, que pouco fazendo para prevenir o crime, querem compensar sua ineficácia tentando inútil e injustificadamente eliminar o crime aumentando o grau de ferocidade da repressão.
E se, para Alberto Passos Guimarães, não podem pairar questionamentos acerca da causalidade profunda desse quadro – em suas palavras, “não pode haver a menor dúvida quanto à influência preponderante que têm os fatores econômicos na motivação do banditismo urbano” (p. 248-249) –, ele não se restringe a essa indicação abstrata: recorre à análise histórica da formação econômico-social brasileira para concretizá-la, mostrando como a “via prussiana” marca a constituição do capitalismo no Brasil e como ao monopólio oligárquico da terra (nunca rompido) deve-se creditar uma “população excedentária” inabsorvível nos marcos de uma industrialização/urbanização como a que aqui se processou. E, de maneira rigorosa, Alberto Passos Guimarães detecta e compreende o pauperismo no Brasil como entrecruzamento de concentração de propriedade e de concentração de renda (entrecruzamento que envolve, naturalmente, a concentração de poder político).
Ademais – e este aspecto deve ser sublinhado –, a compreensão que nosso autor tem dos “fatores econômicos” nada concede ao economicismo. Se vincula a eles “os efeitos negativos dos desequilíbrios demográficos, do pioramento das condições de habitação, de alimentação, de falta de assistência sanitária, de recursos médico-hospitalares, os sintomas de desnutrição, as altas taxas de mortalidade geral e de mortalidade infantil” (p. 258), Alberto Passos Guimarães assinala também, no contraponto da crescente magnitude da violência, a emergência de uma nova moralidade: ler mais
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