O leitor não economista certamente enxerga o ato de dar calote como algo que, além de condenável moralmente, acarreta custos ao transgressor. Afinal, é intuitivo prever que alguém com nome sujo enfrentará dificuldade para obter créditos – sobretudo se não fizer parte daquela elite de cidadãos que passeia no Distrito Federal, mas este é outro assunto.
O custo de não honrar compromissos vai além da simples exclusão do mercado de crédito. Mesmo quando o acesso é recuperado, o ex-caloteiro carrega por um tempo o estigma que faz com que ele tenha dificuldade de obter empréstimos em condições semelhantes às do pagador exemplar. Diga-se, esta é uma das justificativas para o chamado “cadastro positivo” – uma forma de facilitar o acesso ao crédito para pessoas exemplares.
Esta verdade indiscutível para indivíduos não parece valer para países. Contrariando o bom senso, a evidência sugere que uma nação caloteira amarga custos relativamente modestos, seja de exclusão, seja de condições de crédito. Este fato está tão cristalizado na literatura dos último 30 anos que a missão do economista é tentar explicar o enigma – e não reclamar da incongruência dos fatos.
Muito bem. A verdade foi posta em cheque por dois economistas que resolveram arregaçar as mangas e coletar um enorme banco de dados registrando todos os calotes contra credores estrangeiros registrados no período 1970-2010. Um resumo do estudo – de Juan Cruces e Christoph Trebesh – foi publicado ontem sob a forma de artigo no Vox – site imperdível (em inglês) em que é possível acompanhar de forma simples a opinião de economistas da primeira divisão.
Os autores partiram de uma noção que não requer genialidade. A idéia é que um país que aplica ao credor perda de 77%, como foi o caso da Argentina em 2005, será tratado de forma menos condescendente pelo mercado do que um país que impõe perda de 10% – como o Uruguai, em 2003.
Esta idéia quase óbvia não podia ser testada antes porque não havia uma compilação rigorosa e abrangente de dados. Até hoje, a pesquisa era feita diferenciando-se apenas os países em dois grupos: caloteiros e não caloteiros, não havendo distinção com base no tamanho do calote. Estatisticamente, esta classificação mais grosseira levava à conclusão de que os calotes saíam relativamente barato.
O gráfico abaixo mostra que a intuição é correta – o problema estava nos dados. De fato, o custo para nações que aplicam calotes “grandes” é significativamente maior do que o das nações que aplicam calotes “pequenos”.
O calote mediano – de um total de 180 aplicados por 68 países (!) – é de 37% do crédito (trazido a valor presente). A linha pontilhada mostra a evolução do prêmio pago pelo caloteiro em relação ao juro de um devedor de baixo risco. Note-se que, quatro anos após o calote, os “grandes” pagam prêmio de 5 pontos percentuais (500 pontos de porcentagem) enquanto o prêmio pago pelos “pequenos” é de 200 pontos.
Há uma série de lições a serem aprendidas com este novo banco de dados, sobretudo agora que o tema na ordem do dia é o tamanho do peso a ser arcado pelo setor privado na reestruturação da dívida da Grécia. À primeira vista, por exemplo, a história parece sugerir que a redução de 21% acordada na primeira rodada de negociação soa benigna demais. Mas vamos deixar estas conclusões para quem é do ramo.
A meu ver, o que mais chama atenção lendo o artigo é a importância de um trabalho sério, monótono e, muitas vezes inglório, de coleta de dados que, no final, permite por em cheque verdades até então aceitas normalmente.
Trabalhos como esse são duros porque expõem de forma dramática a nossa ignorância e mostram que a economia está longe de ser uma ciência exata. Os melhores métodos com dados imperfeitos podem produzir resultados enganosos.
Ainda assim, o trabalho dos nossos amigos refutou a verdade anterior de forma científica. Mostrou com dados que a explicação intuitiva é a melhor. Esta é a forma honesta de provocar mudanças de opinião e fazer com que controvérsias e enigmas sejam resolvidos de forma positiva. Todo mundo ganhou com o esforço da dupla.
Infelizmente, no entanto, há quem, diante da exposição corriqueira das fraquezas do conhecimento econômico, prefira nivelar o debate por baixo, usando a fragilidade dos dados e dos modelos como forma de validar e justificar qualquer coisa. Refiro-me a economistas de notável saber que usam uma retórica de primeira linha para invalidar esforços de dar objetividade às controvérsias. A discricionariedade desses economistas já custou fortunas ao Brasil.
Quem dera os economistas mais famosos e influentes fossem aqueles que costumam por a mão na massa.
Fonte: Exame - A consciência de dois liberais.
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